O melhor da vida



Brasília, DF — Já faz um bom tempo que não atualizo a coluna. Meu compromisso era escrever ao menos um texto por semana e, juro, assim seria caso as intempéries da vida não me engessassem também neste sentido. Prometi a mim mesmo, inclusive, jamais voltar a falar sobre meus problemas aqui, exceto se estes pudessem servir de parâmetro a outras pessoas, auxiliando-as mesmo que de maneira  irrisória a afagar seus calvários.

Escrevo este texto no bloco de notas do meu celular sentado num dos bancos de concreto dispostos ao lado de fora da recepção do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. Infelizmente o que me trouxe aqui não fora uma pauta e nem curiosidade jornalística. Lamentavelmente mesmo, porque há muito o que contar sobre este lugar maravilhoso que abriga tantas histórias de tristezas e sofrimento, mas também de muito amor e superação.

É primordial que se reitere: o Sarah é uma instituição pública de saúde. E aqui, tanto internos quanto pacientes transitórios, são taxativos ao afirmar que não se trata de um hospital, mas sim de um hotel seis estrelas.

Eu, que já estou no quarto dia aqui - três noites bem dormidas - faço questão de concordar com todos esses depoimentos.

O tratamento começa na portaria: profissionais sorridentes, queridíssimos, fazem questão de cumprimentar todo mundo que chega, passando as devidas instruções. A ansiedade e o incômodo que geralmente são causados por ambientes hospitalares vão abrindo espaço para uma calmaria irresistível a cada mão apertada, cada papo batido. 

Aqui você não é um número. Aqui você tem nome e as pessoas se interessam de verdade. Não se observa aqui o afã de dar alta para abrir novas vagas. A máxima cada caso é um caso funciona bem neste complexo, mas com avaliações minuciosas e atenção triplicada. É tão surreal que, qualquer pessoa que passe por aqui, enfermo ou não, não consegue deixar de se questionar por que os hospitais públicos no Brasil não conseguem emular sequer 30% de toda essa eficiência.

Porém, mais importante do que tudo isso, são as milhares de vidas que passam por aqui. Há muita gente brigando pela sobrevivência. Há pais atenciosos cujo o amor transborda pelas feições. Vítimas da violência urbana, meninos que ficaram tetraplégicos antes mesmo de completarem 25 anos, no auge de todos os ânimos, passaram a conviver só com desânimos.  É desolador pensar que essas crianças - porque são meninos e meninas ainda - tenham sido condenadas sumariamente a uma sentença irrecorrível enquanto seus agressores provavelmente estejam soltos ou, na melhor das hipóteses, cumprindo penas brandas e usufruindo de todas as benesses das frágeis leis tupiniquins. Mas isto é discussão para outro momento.

Como conversei com familiares e os próprios internos na condição de colega e não como repórter, prefiro não mencionar nomes. Basta saber que situações distintas de desespero suscitam uma união tão transcendental que seria difícil conceber dos muros para fora, naquele planeta tão individualista chamado Terra.

Hoje, por exemplo, acordei com um jovem de 22 anos me dando bom dia. Ele está na cama logo à frente. Bem humorado, amigável e inquieto, não parece ter sido vítima de seis tiros. A esposa o acompanha semestralmente para tratamentos no Sarah. Quando chegou aqui, mal falava e pouco se movia. Hoje só falta andar. Sabe o nome e o local de origem de todos os internos e percorre a Enfermaria cumprimentando um de cada vez. É um sujeito encorajador, assim como os demais, cada um segurando a sua própria cruz. Ele se recupera bem porque os tiros não lhe causaram danos à medula, diferentemente de outro adolescente do andar de cima atingido por um único disparo na coluna vertebral. Conheci o pai deste, um senhor simples de semblante sério. Os dois são de Manaus, mas descobri que o genitor tem outros fihos e um deles reside em Porto Velho, curiosamente diretor da ANATEL. O pai se comove e comemora os avanços do filho, que há pouco só mexia o pescoço e balbuciava palavras. Hoje o rebento já fala e consegue mexer as mãos. Ele credencia a melhora ao tratamento proporcionado pelo Sarah.

Tive contato com outros dois seres humanos fantásticos, também de Rondônia, mais especificamente de Cacaulândia. Outro jovem acometido por problemas neurológicos acelerados por uma queda. De um dia para o outro, passou a perder os movimentos, principalmente das pernas. A mãe, risonha e gentil, conta com alegria como a instituição corroborou com a melhora do filho, que recebeu alta hoje e só deve regressar caso não tenha avanços, coisa que os médicos não acreditam, embora não descartem.

E, na mesma Enfermaria onde tenho sido tratado, há um senhor do interior de Goiás que voltou a ser criança após um acidente de moto. Volta e meia ele aparece no pé da minha cama me contando curiosidades como, por exemplo, um método eficaz para saber quantos meses do ano têm 30 ou 31 dias utilizando apenas o punho cerrado. Também me propôs um jogo de palitos que, como se trata de sorte, não preciso nem dizer que não ganhei uma partida sequer.

Enfim, são muitas narrativas.

Muitos casos diferentes ligados de forma umbilical pelos seus lados trágicos e fascinantes. Os que não podem falar, extravasam através dos olhares a vontade de viver; os que podem, claro, fazem questão de expor o quanto são felizes e realizados.

Estar aqui poderia ser considerado uma experiência complicada, mas a cada momento absorvo a importância de enxergar a beleza de viver nas mínimas coisas. E se você está achando a prosa meio Augusto Cury, conversa fiada e autoajuda disfarçada, lhe dou toda a razão. Eu mesmo acharia enfadonha a missão de compreender se estivesse apenas lendo e não convivendo e relatando. Cabe ao leitor enxergar ou não as delicadezas e suavidades de cada situação para que encontre o estímulo necessário a fim de viver com qualidade. Este é o melhor da vida!

Autor / Fonte: Vinicius Canova

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