Unidades de Justiça de pelo menos 16 Estados e o Distrito Federal já utilizam a técnica do psicoterapeuta alemão Bert Hellinger. FOTO: Luiz Silveira/Agência CNJ
Sérgio Brito da Ponte, 41 anos de idade, passou a maior parte do tempo da sua vida na cadeia. Criado pela avó em um garimpo no interior de Rondônia, entrou para o tráfico de drogas aos 10 anos de idade, único trabalho que conheceu. Desde 2001, entrou e saiu do presídio diversas vezes – a última pena começou a ser cumprida em 2011 e só termina em 2021.
A história de Sérgio, que parecia condenado à criminalidade, como tantos outros detentos, começou a mudar em uma sessão de "constelação familiar" feita pela Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso (Acuda), parceira do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO).
A técnica alemã da constelação familiar é cada vez mais utilizada para resolver conflitos pelo Judiciário brasileiro.Unidades de Justiça de pelo menos 16 Estados e do Distrito Federal já utilizam a técnica do psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, hoje com 92 anos de idade, que criou seu sistema na Teoria Geral dos Sistemas, na Fenomenologia e no Psicodrama.
Durante a terapia, a estrutura familiar é reproduzida com auxílio de outras pessoas e os conflitos de gerações podem ser debatidos. Nos Estados de Rondônia e no Amapá, a técnica psicoterapeuta tem sido usada não só com as partes de processos judiciais com a intenção de resolver litígios, mas para a ressocialização de detentos.
O tribunal rondoniense está investindo na formação dos magistrados neste método de solução de conflitos – 27 deles já foram capacitados. Para o desembargador Walter Waltemberg, é importante que os próprios magistrados sejam “constelados” antes de aplicar a técnica. “Observamos uma melhora na saúde e bem-estar dos juízes, que reflete na produtividade e na qualidade de suas sentenças”, diz Waltemberg, durante o workshop "Direito Sistêmico como meio de Solução Pacífica de Conflitos", que ocorreu em 12 de abril no Conselho da Justiça Federal, em Brasília/DF.
Em Rondônia, a terapia é oferecida pela ONG Acuda, parceira do tribunal desde 2001. Cerca de três mil detentos já passaram pela instituição, que atualmente atende a 100 presos de três unidades situadas na capital, Porto Velho: Penitenciária Estadual Aruana, Penitenciária Estadual Ênio dos Santos Pinheiro e Presídio Vale do Guaporé. O projeto começou com a organização de peças de teatro e hoje oferece diversos cursos de capacitação profissional, como mecânica, artes plásticas, massoterapia, oficina de motos e carros, marcenaria, tapeçaria, entre outros.
Os presos que participam do projeto – apenas aqueles com bom comportamento e que já estejam há mais de um ano em regime fechado – passam o dia na instituição. Pela manhã, eles têm sessões terapêuticas, massagem, meditação, yoga. À tarde os detentos trabalham nas oficinas profissionalizantes.
Participar do projeto garante também a remição de pena prevista em lei: três dias de trabalho na ONG significam um a menos na cadeia. Mesmo após o cumprimento da pena, muitos continuam trabalhando na ONG – atualmente, há 27 egressos que se tornaram monitores.
“A demanda é enorme e, se tivéssemos 500 vagas, seriam preenchidas imediatamente”, diz Luiz Carlos Marques, presidente da Acuda. As sessões de constelação familiar ocorrem uma vez por semana, com o objetivo de permitir que, a partir do autoconhecimento, os presos consigam refletir sobre os motivos que o levaram ao crime.
“É um espaço de reflexão profunda que permite que o próprio preso encontre ferramentas para sair do crime. Tentar fazer com que eles ressocializem, sem que se compreendam, é inútil como enxugar gelo”, diz Marques. Foi justamente na sessão de constelação familiar que o detento Sérgio conseguiu falar pela primeira vez sobre a grande mágoa que tinha da mãe biológica por tê-lo entregue à avó quando ele tinha um ano de idade e nunca mais apareceu.
Sérgio viveu em um garimpo no interior de Rondônia e, aos 10 anos de idade, foi morar na capital com um padrinho que trabalhava para o tráfico. A tarefa de Sérgio, dali em diante, era receber os "clientes" no portão de casa e perguntar se queriam "preto ou branco", ou seja, maconha ou cocaína.
“Isso foi tudo o que eu aprendi na infância. Às vezes, queria mudar de vida, mas as portas sempre se fechavam e eu continuava no tráfico”, diz. Durante a constelação, Sérgio se dirigiu à pessoa que representava a sua mãe e conseguiu abraçá-la e dizer sobre a falta que ela sempre lhe fez.
“Foi a primeira vez na vida que eu fui ouvido e foi muito difícil falar”, diz. Agora, ele finalmente faz planos para quando concluir o cumprimento da pena: trabalhar com cerâmica, técnica que aprendeu na ONG, e retomar o contato com seus seis filhos e a esposa. “Minha vida foi só cadeia, não consegui acompanhar o crescimento deles”, lamenta-se.
Não foram poucas as vezes em que Rogério Araújo, diretor geral da ONG Acuda, ouviu frases preconceituosas sobre seu trabalho, como: “O vagabundo matou, roubou e ainda vai ganhar terapia e massagem?”.
Rogério reage: “A sociedade exige a recuperação do detento, mas não quer contribuir com isso. As oportunidades são mínimas. Eu não tenho como reparar o dano que eles fizeram, mas posso conscientiza-los para que não repitam o erro”, diz ele, também um egresso do sistema carcerário.
Para Rogério, ao passar pelas terapias como a constelação familiar e pelas sessões de terapia e massagem, o preso consegue se colocar no lugar do outro e, aos poucos, desconstruir a formação do crime. “É um processo lento de recuperação, em que o preso passa a valorizar o afeto e a atenção. Muitos não conseguem dar sequer um abraço. Quase sempre há uma questão de abandono e desestrutura familiar”, diz.
O detento Henrique (nome fictício), 33 anos de idade, participou de uma sessão de constelação familiar em fevereiro do ano passado. Durante a terapia, conseguiu se conscientizar da vontade que tinha de conviver com uma filha que teve antes do casamento e que nunca assumira e do quanto isso atrapalhava a sua vida.
“Ali comecei a entender a mim mesmo, a minha realidade”, reconhece agora. Daí em diante, muitas mudanças aconteceram: a sua esposa contou aos dois filhos do casal que eles tinham uma irmã mais velha, Henrique conseguiu concluir seis cursos na área de massoterapia na ONG e passou a trabalhar na recuperação de adolescentes do sistema socioeducativo, enquanto cumpre seu último ano de pena. Henrique ensina aos jovens que cumprem medida o que aprendeu na ONG, com objetivo de que saiam do crime. “Assim que estiver livre, vou procurar minha filha e quero continuar meu trabalho”, diz.
Autor / Fonte: Luiza Fariello / Agência CNJ de Notícias
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