Por MPF/RO
Publicada em 08/09/2020 às 08h50
Em dois anos, o trabalho de apuração criminal desenvolvido pela Força-Tarefa Amazônia (FT Amazônia) do Ministério Público Federal (MPF), concentrada nos estados do Amazonas e de Rondônia, resultou no cumprimento de 516 medidas de investigação em 15 operações, além do ajuizamento de 18 ações penais. A força-tarefa foi oficialmente instituída em agosto de 2018 e prorrogada em fevereiro de 2020 por mais um ano. Nesse período, foram reveladas práticas criminosas baseadas na destruição de recursos naturais que movimentavam quantias milionárias. O total de denunciados é de 105, entre pessoas físicas e jurídicas.
Entre os casos de destaque está a Operação Elemento 79, que descortinou um complexo esquema de utilização de ouro proveniente de garimpos ilegais na Amazônia em uma indústria joalheira sediada em Manaus. Em pouco mais de dois anos, a indústria recebeu 316 quilogramas de ouro de origem ilícita, vindos de garimpos em Roraima, Rondônia e interior do Amazonas, para transformação em joias e barras de ouro. Segundo parecer produzido pelo setor pericial do MPF, cada quilograma de ouro extraído ilegalmente na Amazônia produz, minimamente, R$ 1,7 milhão de danos ambientais. Isso significa que, nessa operação, os danos ambientais superam a casa dos R$ 500 milhões.
Outra operação que demonstra as vultosas quantias obtidas pelos infratores a partir dos crimes ambientais na Amazônia é a Ojuara. As investigações revelaram o envolvimento de servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no Acre em esquema de corrupção que favorecia grileiros e pecuaristas ligados a desmatamento na região. Um dos denunciados por lavagem de dinheiro usava a esposa como “laranja”, registrando em nome dela bens e valores decorrentes da atividade criminosa, para ocultar a origem dos recursos, que foram calculados em mais de R$ 3,6 milhões, movimentados entre 2011 e 2019.
De acordo com a coordenadora da FT Amazônia, a procuradora da República Ana Carolina Haliuc Bragança, a atuação conjunta dos procuradores permitiu maior integração entre membros que atuavam na Amazônia no enfrentamento dos crimes-alvo, principalmente em relação ao desmatamento, à grilagem e à violência agrária na tríplice fronteira entre Rondônia, Amazonas e Acre, bem como a mineração ilegal de ouro. Segundo a procuradora, o trabalho da força-tarefa contribuiu para aproximar ainda mais o MPF de instituições parceiras, como a Polícia Federal, superando barreiras estaduais, além de intensificar o contato com a sociedade civil nos territórios que são objeto da atuação do órgão.
“Tudo isso ensejou a produção e disseminação de conhecimento sobre as metodologias delitivas empregadas por redes de crime organizado ambiental; a confirmação da hipótese inicial de que a criminalidade ambiental assumiu caráter de criminalidade organizada na Amazônia, associando-se a ilícitos vários, como lavagem de dinheiro, falsidades ideológicas e materiais, estelionato, grilagem de terras e corrupção; e a mobilização de estratégias multidimensionais, nas quais, em uma dada área-alvo, são combinadas atuações criminais, sob o enfoque de promoção de atividades repressivas e condução de investigações e responsabilizações penais, bem como atuações cíveis, visando à promoção e proteção de direitos de povos e comunidades tradicionais afetadas pelo crime”, avaliou Ana Carolina Haliuc Bragança.
Exemplo dessa atuação múltipla da força-tarefa são as ações de fiscalização repressiva ao desmatamento na Reserva Extrativista Arapixi e no Projeto de Assentamento Agroextrativista Antimary, em Boca do Acre, no Amazonas. “Simultaneamente, obteve-se título jurídico junto ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], assegurando às comunidades extrativistas locais o uso sustentável da área de colheita de castanhas, e logrou-se cancelar Cadastros Ambientais Rurais ilegalmente registrados no território tradicional. Na mesma região, foram denunciados fazendeiros grileiros e policiais vinculados à milícia armada que a eles servia”, apontou a procuradora da República.
A FT Amazônia colaborou ainda para que problemas mais crônicos, relacionados ao acompanhamento e implementação de políticas públicas de enfrentamento de ilícitos ambientais, fossem combatidos, conforme Ana Carolina Haliuc Bragança. “Nesse sentido, foram ajuizadas ações civis públicas importantes, como aquela versando sobre a revogação do zoneamento agroecológico da cana de açúcar na Amazônia e sobre a adoção de medidas emergenciais de combate aos crimes ambientais durante a pandemia de coronavírus, além da ação de improbidade administrativa em face do ministro Ricardo Salles.
Grilagem, desmatamento e cooptação – Ao descrever os desafios enfrentados na atuação como integrante da FT Amazônia, a procuradora Tatiana de Noronha Versiani Ribeiro, lotada em Rondônia, destacou que o principal foco de atuação criminal do grupo naquele estado nesses primeiros anos foi a desarticulação de organizações criminosas voltadas à invasão e grilagem e à extração e movimentação ilícita de madeira em terras da União. “A invasão de terras com finalidade de grilagem ocorre acompanhada de ameaças aos grupos que ocupam legitimamente os territórios, como populações indígenas, ou a servidores públicos incumbidos de sua defesa, razão pela qual a atuação imediata é essencial para proteção da integridade das vítimas. (...) As invasões são seguidas de corte raso e queimada, para limpeza da área, para descaracterizar a floresta”, contou.
Ainda de acordo com Tatiana Ribeiro, os crimes de extração ilícita de madeira são praticados por corte seletivo, inclusive de essências raras e ameaçadas de extinção. “A cadeia criminosa dessa atividade inclui complexos mecanismos de fraude no sistema DOF, que controla a movimentação de produtos florestais. A atuação ocorre por meio de madeireiras, geralmente controladas por ‘laranjas’ e, em alguns casos, sem sequer existência real”, afirmou.
Esses crimes geram grande volume de recursos ilegais, que são posteriormente objeto de procedimentos criminosos para dissimular a origem ilícita dos recursos e permitir seu proveito pelos membros das organizações, isto é, lavagem de dinheiro, conclui a procuradora. “Em razão da alta lucratividade, as organizações criminosas tentam cooptar integrantes das comunidades tradicionais para participar dos crimes, ameaçando o modo de vida e harmonia interna desses grupos”, acrescentou.
Uma das investigações mais representativas ocorreu durante a Operação Amicus Regem, que cumpriu mandados de busca e apreensão em Porto Velho (RO), Brasília (DF), Cuiabá (MT), São Paulo e Itaituba (PA) em busca de provas e bens de interesse das investigações contra empresários, advogados, servidores públicos e empresas envolvidas na formação de uma organização criminosa que conseguiu lucrar mais de R$ 330 milhões por meio grilagem de terras e fraudes no estado de Rondônia ocorridas entre 2011 e 2015.
Outras duas operações conjuntas foram deflagradas com o objetivo de proteger a terra indígena Karipuna, que abrange os municípios de Porto Velho e Nova Mamoré. As operações Karipuna e Floresta Virtual culminaram na expedição de 15 mandados de prisão e 34 de busca e apreensão pela 5ª Vara da Justiça Federal, além do sequestro de bens dos investigados até o valor de R$ 46.096.433,30. Os delitos apurados nos inquéritos policiais incluem estelionato, furto de madeira, receptação, invasão de terras da União, desmatamento ilegal, lavagem de dinheiro, crimes contra a ordem tributária e constituição e participação em organização criminosa. Nos últimos anos, a região vem sofrendo com intensa atuação criminosa de madeireiros e grileiros, sendo constatado que 11 mil hectares já foram devastados em razão da exploração ilícita.
Aprimoramento da atuação - No campo da mineração ilegal de ouro, a produção de conhecimento, consolidada em um Manual de Atuação que analisa toda a legislação aplicável ao garimpo de ouro na Amazônia, colaborou, por exemplo, para o ajuizamento de ação civil pública em Santarém (PA), com foco na instituição de mecanismos de controle da origem e circulação do ouro por parte de órgãos como a Receita Federal do Brasil, a Agência Nacional de Mineração e o Banco Central do Brasil.
Segundo o procurador da República Paulo de Tarso Oliveira, membro integrante do MPF no Pará, a publicação traça uma espécie de perfil do garimpeiro de hoje em dia. “O manual é um instrumento valioso na documentação da memória institucional e serve como norte para procuradores que precisem lidar com a temática. Nesse ponto, vale registrar que direito minerário não é cadeira obrigatória nas faculdades de direito e que o Estado brasileiro teceu um emaranhado legislativo complexo de difícil compreensão da matéria”, pontuou.
O manual também tem sido consultado por órgãos e entidades do Estado brasileiro, organizações não-governamentais e entidades representativas dos setores relacionados à mineração e ao mercado de ouro, observa o procurador. “Todos são unânimes na compreensão de que há falhas graves na cadeia de produção e introdução de ouro no sistema financeiro, sendo necessário esforço interinstitucional no sentido da rastreabilidade do ouro, para que a atividade de extração mineral e a demanda por ouro não cause nem compactue com a destruição da floresta e dos seus povos”, concluiu.
Perspectivas – A coordenadora da Força-Tarefa Amazônia assinala que há três grandes desafios para a atuação do MPF em relação às problemáticas relacionadas à floresta e suas populações, especialmente no cenário atual de avanço da destruição em grande escala e considerando todas as consequências negativas decorrentes para a humanidade.
“Seguir desenvolvendo e testando metodologias que sejam capazes de enfrentar, num contexto de recursos escassos, os ilícitos ambientais crescentes, seja na área criminal, seja na área cível; mobilizar recursos humanos para esse enfrentamento, agregando força de trabalho a esse empenho de proteção e preservação do meio ambiente e dos direitos das populações amazônidas; e difundir a percepção de que essa pauta tem cunho existencial e precisa ser priorizada, já que a destruição da floresta traz efeitos afetando direitos humanos de seus povos e também de todos os habitantes do Brasil, da América do Sul e do planeta, no contexto de mudanças climáticas atual”, declarou Ana Carolina Bragança.