Por G1
Publicada em 08/12/2020 às 14h32
A Suprema Corte dos Estados Unidos começou a analisar nesta segunda-feira (7), o caso do Tesouro dos Guelfos, uma série de artefatos religiosos medievais que descendentes de mercadores de arte judeus afirmam ter sido ilegalmente apropriada pelos nazistas, na Alemanha.
São cruzes de ouro, joias e outras obras religiosas dos séculos XI e XIV, que estão expostas no Museu de Artes Decorativas de Berlim. A mais alta corte americana deve determinar se o caso, que há tempos se arrasta no país, pode ser levado adiante (entenda mais abaixo porque o caso é julgado nos EUA).
Um caso alemão nos EUA
Hermann Parzinger, presidente da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano – que administra o Museu de Artes Decorativas de Berlim – argumenta que a ação tomada pelos herdeiros dos merchants, na Justiça norte-americana, não tem fundamentos.
"Nossa opinião é que a Alemanha é a jurisdição adequada para um caso que envolve a venda de uma coleção de arte medieval alemã por negociantes de arte alemães para um estado alemão'', disse Parzinger em um comunicado.
Em um pedido apresentado antes da sessão, a Alemanha destacou que leva esse tipo de reivindicação a sério.
"O governo alemão forneceu cerca de US$ 100 bilhões (cerca de R$ 510 bilhões, em valores atuais) para compensar os sobreviventes do Holocausto e outras vítimas da era nazista", afirma o comunicado.
Segundo nota do governo, uma vez que a venda ocorreu entre alemães, em solo alemão, apenas os tribunais alemães poderiam decidir neste caso. Decidir de outra forma, diz o comunicado, "terá graves consequências de política externa".
"Se abre um caminho para uma série de ações judiciais contra soberanos estrangeiros por seus atos domésticos soberanos – e isso pode levar outras nações a retribuir, forçando os EUA a defender ações semelhantes", conclui o documento.
O governo dos EUA apoia a Alemanha neste caso.
Um presente para Hitler
O Tesouro dos Guelfos compreende 44 obras-primas de arte eclesiástica medieval que derivam da Casa de Guelfo, uma das mais antigas dinastias europeias que reuniu extensas coleções de arte.
Tendo comprado o Tesouro dos Guelfos da família Welfen, em 1929, um consórcio de marchands judeus vendeu peças avulsas no ano seguinte. Em 1935, 42 peças e joias foram entregues para o então estado prussiano, que as manteve em sua própria coleção.
Hermann Göring, o então primeiro-ministro da Prússia e chefe da Força Aérea Alemã, deu o tesouro a Adolf Hitler como um presente pessoal. Mas os herdeiros dos negociantes de arte judeus dizem que tal presente fora fruto de extorsão.
Alega-se, por exemplo, que um dos comerciantes de arte, Samy Rosenberg, recebeu ameaças de morte. Seus herdeiros argumentam que, se ele não tivesse vendido o tesouro pelo baixo valor de mercado estabelecido pelos nazistas, ele e sua família nunca teriam sido retirados da Alemanha.
Tal versão dos eventos foi aceita pela juíza americana Colleen Kollar-Kotelly em 2017, que declarou: "A tomada do Tesouro [...] guarda conexões suficientes com o genocídio, de modo que a alegada venda forçada pode representar uma violação do direito internacional."
De fato, se o caso for julgado sob as leis do direito internacional, o princípio segundo o qual um estado soberano não pode ser processado perante os tribunais de outro estado torna-se irrelevante.
Um 'acordo justo' em 1935?
O ponto chave no processo em questão é se todos os possíveis casos de arte roubados pelos nazistas devem ser investigados em detalhes ou se basta presumir que, após a tomada de poder por Hitler em 1933, os negociantes de arte judeus foram gradualmente privados de direitos e, portanto, não estavam mais em um nível capaz de atuar livremente no mercado artístico.
A Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano defende a primeira opção, alegando que um preço apropriado fora pago em 1935, pois uma crise econômica global havia deprimido o mercado artístico. Parzinger disse que os registros históricos "mostram claramente que houve longas e difíceis negociações em torno do preço e que os dois lados se encontraram exatamente no meio de suas ofertas iniciais".
No entanto, os herdeiros dos negociantes de arte argumentam que, em 1935, não era possível para mercadores judeus obterem um "acordo justo". Eles dizem que o preço de compra, 4,25 milhões de reichsmarks – moeda da época– , foi cerca de um terço do valor real da coleção.
Em todo caso, segundo os princípios do direito internacional, vendas de propriedades por judeus na Alemanha nazista são presumivelmente feitas sob pressão e, portanto, inválidas, disse o advogado dos herdeiros, Nicholas O'Donnell.
Faltam leis para casos de arte roubada na Alemanha
Já em 2008, os advogados que representam os negociantes de arte judeus solicitaram que a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano devolvesse o Tesouro dos Guelfos a seus legítimos proprietários.
Mas em 2015, a chamada Comissão Limbach de especialistas independentes recomendou que o tesouro fosse deixado em Berlim, argumentando que o preço pago em 1935 correspondia ao valor de mercado de então.
Os advogados que representam os herdeiros dos comerciantes de arte disseram então que não tinham escolha a não ser entrar com processos em um tribunal de Washington DC, uma vez que não há base legal para os tribunais considerarem os casos de restituição na Alemanha.
Com o passar dos anos, o caso chegou à Suprema Corte dos EUA, que agora ouvirá argumentos para determinar se os herdeiros da coleção devem ter permissão para continuar com o processo nos tribunais americanos. A decisão é esperada para junho de 2021.
Se for determinado que os tribunais americanos têm jurisdição no caso, isso pode se tornar o precedente para outras ações do tipo. Como tal, o ônus da prova não caberia mais aos herdeiros de negociantes de arte ou proprietários privados possivelmente destituídos de direitos.
Em vez disso, os museus alemães teriam de provar que são proprietários legais das obras de arte que chegaram à sua posse durante a era nazista.