Por Héverton Aguiar
Publicada em 04/03/2021 às 15h47
Um dia desses eu estava lendo uma postagem feita pela caríssima Sandra Santos – notável repórter de Porto Velho – RO, em sua página no Facebook, que me levou a algumas reflexões. Ela fez um comentário crítico acerca do ocorrido em um reality show que está sendo exibido em um canal de televisão aberta, em que um dos participantes – galã da teledramaturgia brasileira – teria sido sincero e respeitoso com uma moça, que também participa da telerrealidade, ao recusar as suas investidas amorosas. Comportou-se, dessa forma, o rapaz, com a decência esperada de um homem que, com sensibilidade, expõe à mulher os motivos pelos quais não está disposto a se relacionar amorosamente com ela. Até aqui tudo normal, nada de relevante! No entanto, como ponderou a autora da publicação, a reação do público nas redes sociais foi diametralmente oposta à normalidade que o acontecimento evidenciava, o que nos fez repensar sobre a reação dos internautas.
No caso, a talentosa repórter demonstrou indignação com a incoerência do comportamento das pessoas que, ao mesmo tempo que erigem a bandeira do não ao machismo, da defesa da dignidade da mulher e do combate ao sexismo institucionalizado sistêmico, esperam, fenotipicamente, que o homem tenha a postura de “pegador”, de “macho alfa”, daquele que não dispensa qualquer affair. Quando o homem se comporta de forma contrária, como fez o jovem galã, as pessoas furibundas o adjetivam com os mais desairosos termos possíveis, tendo a situação do jovem rapaz se agravado, mormente, por sua hereditariedade paterna.
Essa incongruência do comportamento humano representa apenas um dos vários exemplos de paradoxos invertidos que testemunhamos hodiernamente. Não são raras as vezes em que nos deparamos com as contradições dos que amam e cantam aos ventos o desejo de ver a felicidade do ser amado, mas assim a desejam desde que essa felicidade não contraste com a sua! A incoerência daqueles que, mesmo cônscios da gravidade da pandemia que assola a humanidade, desconsideram os apelos das autoridades sanitárias e se aglomeram em festas clandestinas, bares, encontros e, concomitantemente, fazem campanhas financeiras e de orações por um conhecido, um ente querido que tenha sido infectado, e, quando a morte ceifa a vida de um dos seus, usam as redes sociais para, em choro, bradarem: Vírus maligno! Traiçoeiro! Cruel e covarde! Até quando? Depois, voltam para as festas e aglomerações rotineiras.
São infindáveis as espécies de contradições provenientes do comportamento das pessoas, razão pela qual não ousarei tentar elencadas. Gostaria apenas de convidá-los a pensar sobre a sua essência. Esses comportamentos paradoxais, contraditórios e duais do ser humano intrigam, desde muito tempo, os mais fluentes behavioristas. Como é possível o mesmo indivíduo emitir um conceito sobre um determinado assunto e se comportar de forma tão díspare acerca dele? Eis a grande questão!
A princípio, torna-se necessário consignar, com a devida clareza solar, que não estamos nos referindo à convivência dos contrários, tampouco estamos refletindo acerca da sociedade plural e a salutar contenda entre os contras e os a favores, entre os coxinhas e os mortadelas, entre negacionistas e alarmistas, separatistas e integracionistas, muito menos, ainda, sobre o perene dilema entre filósofos, na busca da verdade absoluta, “para quem as coisas só podem ser verdadeiras ou falsas”, e os sofistas, na procura por vários pontos de vista, para quem “o homem é a medida de todas as coisas”. A polarização de ideias certamente aperfeiçoa a tolerância social, afastando-nos do extremismo e do fanatismo, os quais, conforme lição de Ariano Suassuna, nunca moram na mesma casa com a inteligência. A pluralidade de comportamentos e ideias sociais aperfeiçoam a democracia, mesmo que seja ela “sequestrada, condicionada ou amputada”, no dizer de Saramago.
A proposta aqui é fazermos uma análise endógena sobre contradição comportamental, esse paradoxo interno e inverso, pedindo vênia, desde já, pelo neologismo, nos valendo da licença poética. Isso porque o paradoxo é uma figura de linguagem que indica contradição, mas não ilógica. O termo é complexo e se aplica à linguística, à matemática, à física, à filosofia e também à poesia. Mas, para além disso, é uma ideia coerente e bem estruturada que apresenta elementos contraditórios à sua própria estrutura. Trata-se de um raciocínio com duas ideias, em que uma se opõe à outra. Aparentemente sem nexo ou lógica, mas só aparentemente, visto que encontra nexo e lógica no raciocínio da contradição. O que não ocorre nos comportamentos paradoxais inversos das pessoas.
Ao longo do tempo, inúmeros paradoxos intrigaram os pensadores, todos impregnados por algo contrário à opinião ou ao senso comum. Por oportuno, traremos alguns deles para melhor aclarar a proposição:
Paradoxo do mentiroso
O paradoxo de Epiménides, cidadão de Creta – uma famosa ilha da Grécia antiga – é um dos inúmeros paradoxos do mentiroso existentes e também o mais famoso. Epiménides disse: "Todos os cretenses são mentirosos", sendo que ele mesmo era um cretense. Ora, se todos os cretenses são mentirosos, será que ele está falando a verdade? E se estiver dizendo a verdade, a sua afirmação já não será correta, porquanto ele não estaria dizendo uma mentira.
Paradoxo de Epicuro
Esse paradoxo se baseia nas três principais características do Deus judaico: onipotência, onisciência e onibenevolência, e na existência do mal no mundo. Para Epicuro, filósofo grego do período helenístico, se duas características forem verdadeiras, a terceira é necessariamente falsa. Argumenta ele: Se Deus é onisciente e onipotente, isso significa que ele tem conhecimento de todo o mal e tem poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então, ele não é onibenevolente! Se Deus é onipotente e onibenevolente, isso quer dizer que ele tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, uma vez que ele é bom. Mas ele não o faz por não saber o quanto de mal existe e onde o mal está. Logo, ele não é onisciente! E conclui: Se Deus é onisciente e onibenevolente, então ele sabe de todo o mal que existe e quer extingui-lo. Mas ele não o faz, visto que não é capaz. Portanto, ele não é onipotente! Percebam que o pensador nos apresenta um trilema aparentemente contraditório, mas amparado pelo nexo lógico. Aos que, intrigados, tiverem curiosidade na solução desse paradoxo, sugiro a leitura da Resolução Agostiniana.
Até o famoso poeta Vinícius de Moraes se valeu dessa figura de linguagem em suas composições. Um de seus mais famosos versos reflete um verdadeiro paradoxo. No Soneto da Fidelidade, o poeta finaliza os versos da seguinte forma: “Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”. Ora, se o amor é infinito, irá durar para sempre. Mas se o amor for infinito apenas enquanto durar, então, deixa de ser necessariamente infinito. Essa é a base do pensamento paradoxal, proposições e argumentos que contrariam os princípios básicos e gerais do raciocínio humano.
Mas, como dito acima, não é isso que acontece com o comportamento das pessoas! O que testemunhamos é uma desarmonização dos princípios éticos/morais, uma vez que falam uma coisa e fazem outra. No jargão mais popular: “Não são fiéis à fé que professam”, o que denota a ausência de conceitos enraizados do que seja certo ou errado. Não se trata da liberdade inarredável de mudar de ideia, posto que o homem não deve envergonhar-se de fazê-lo, já que não deve ter vergonha de pensar, como foi dito por Blaise Pascoal. Nas palavras de Francis Bacon, “Triste não é mudar de ideia, triste é não ter ideia para mudar”. Aqui, a questão determinante é que o seu comportamento é incompatível com as suas ideias, e essa incompatibilidade traduz uma infidelidade de princípios, criando, assim, uma antípoda entre o que diz que pensa e o que efetivamente faz. Helena Blavatsky, responsável pela sistematização da moderna Teosofia, nos adverte dizendo: “Honra suas verdades com a prática!”
As pessoas têm frequentemente abandonado suas individualidades, que fazem delas seres únicos e íntegros, pela massificação das ideias suscetíveis à manipulação. Ou seja, deixam de fazer o certo por ser o certo, mesmo que ninguém esteja vendo, como esculpido no imperativo categórico de Kant, para fazer o certo apenas pelo receio da coerção. Por consequência, observa-se uma espécie de farisaísmo moral, já que dizem coisas que provavelmente não façam e fazem coisas que provavelmente não dizem.
Vivemos tempos difíceis, como se as pessoas tivessem encontrado o anel de Giges, um artefato mítico e mágico mencionado pelo filósofo Platão no segundo livro de A República, que dá ao possuidor o poder de tornar-se invisível. O mencionado anel é semelhante ao que foi dado de presente em O Hobbit e no livro O Senhor dos Anéis, que concede a invisibilidade aos que o usam, mas também os corrompe!
Diz a lenda que, certa vez, um pastor de ovelhas – um homem que se notabilizava por sua seriedade, honestidade, probidade, lealdade e fidelidade no cumprimento de todos os preceitos sociais – encontrou o anel de Giges, o colocou no dedo e ao girá-lo percebeu que ficava invisível. A partir daí, se valendo da invisibilidade momentânea, começou a praticar inúmeras condutas reprováveis no seio da sociedade onde vivia, o que demonstrou que sua retidão de outrora era apenas medo da punição e das consequências negativas, pois dentro de si habitava a degradação moral.
Refletindo sobre essa degradação moral, o pensador inglês Thomas Hobbes, autor da importante obra política Leviatã, disse que a espécie humana representa a luta de todos contra todos e que sua natureza é a má índole, sendo, nesse particular, contrapontuado por Rossueau, para quem o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Se considerarmos que a sociedade se configura na associação de uns com os outros em uma espécie de rede de relacionamento entre as pessoas, concluiremos que são elas (as pessoas) a gênese do problema sobre o qual estamos nos debruçando.
Sandra Santos, ainda em sua postagem, disse que o jovem ator teria admitido estar com depressão, doença considerada pelo Organização Mundial da Saúde como o mal do século XXI, e que ainda sofre de ansiedade. Indignada escreveu: “as brincadeiras e deboches internet afora mostram apenas como o ser humano é indiferente à dor alheia e valoriza a alegria falsa”. Esse comportamento revela o ódio nosso de cada dia, o rio de ódio que flui perene, sob águas superficialmente calmas, como dito por Leandro Karnal. As pessoas se comprazem com a dor alheia, riem e debocham do sofrimento do próximo, sempre com uma justificativa de acordo com sua lógica – “convencem as paredes do quarto e dormem tranquilas”, já cantado pelo poeta.
Cada vez mais as pessoas acreditam naquilo que elas preferem que seja verdade, e que em nome do bem possam fazer o mal. Esse paradoxo interno e inverso nos faz conviver com a violência que não achamos que é nossa, sobretudo a violência da intolerância, do desrespeito e da insensibilidade com a dor e o drama alheios. Não podemos olvidar que ninguém segue vetor contrário! Da mesma forma que o racismo, machismo, misoginia, homofobia, demofobia, dentre outros, estão no elenco dos gestos de ódio e revelam nossa primitividade, esse ódio cria a violência real e moral que assola a sociedade.
Por essas razões, fica compreensível a afirmação de Nietzsche quando ele diz que o último cristão morreu na cruz. Que Cristo foi o primeiro e último cristão. Já que o homem cristificado supera completamente o ódio e, quando é insultado, deve amar o que lhe ofende. Vivemos em uma sociedade em que as pessoas se apressam mais em retribuir a maldade sofrida do que um benefício recebido.
É, querida Sandra Santos, tens plena razão! O ser humano realmente é dúbio, contraditório e paradoxal, mas não podemos perder a esperança, posto que não podemos esquecer que ele é a melhor de todas as criações de Deus, o mais precioso aos seus olhos! Estamos neste plano existencial para aprendermos e evoluirmos espiritualmente. O bem ainda é melhor e maior do que mal, e o mal em si é excepcional. O psiquiatra José Ângelo Gaiarsa falava que o mal tem tanta visibilidade porque o bem ainda prevalece. Se fazer o bem fosse raridade, estaria estampado nas primeiras páginas dos jornais.
Sigamos, pois, firmes na linha evolutiva espiritual, e que esperancemos que sempre haja a prevalência do bem sobre o mal!
Autor: Héverton Aguiar, Promotor de Justiça, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UFMG, pós-graduando em filosofia pela PUC/RS, estudante de filosofia da Nova Acrópole, professor universitário e palestrante.