Publicada em 22/04/2022 às 10h39
A invasão russa na Ucrânia tem deixado um rastro de agressões à população civil. A cada dia, surgem denúncias de novos casos de estupro e tortura no país, principalmente em áreas que foram ocupadas pelas forças de Moscou. Desde a retirada das tropas da região de Kiev, centenas de casos já foram registrados, de acordo com informações do presidente Volodymyr Zelensky.
Com o passaporte cazaque na mão, Konstantin conseguiu atravessar os postos de controle russos de algumas cidades sitiadas ao redor da capital Kiev. Desta forma, ele conseguiu retirar mais de 200 pessoas de sete vilarejos diferentes. Soluçando, ele contou aos enviados especiais da RFI histórias que ficarão gravadas em sua memória. É o caso de uma jovem que conseguiu se esconder em seu carro, quando ele parou na frente de sua casa.
“Eu vi seus olhos, seu olhar, ela estava tão exausta. Ela só me disse duas palavras: ‘Salve-me’. Ela não era alta e tinha 15 anos”, relata. “Ela me disse que havia sido prisioneira em um porão, onde jazia o cadáver de sua mãe, assassinada diante de seus olhos. Soldados russos a estupravam todos os dias, e eles eram muitos. E quando ela desmaiava, eles jogavam água fria em seu rosto e continuavam a estuprá-la. Os soldados disseram-lhe que ela não daria à luz um bebê ucraniano porque, depois disso, ela nunca mais iria querer dormir com um homem novamente.”
Homens também são vítimas
Konstantin também relata o estupro coletivo de dois homens de Donetsk, no sul da Ucrânia. Eles haviam deixado a região durante o conflito, em 2014. Seus nomes constavam em uma lista e os soldados russos os encontraram.
“Um deles tinha 22 anos e o outro, 26. Eles foram estuprados porque os russos lhes disseram que eram traidores porque haviam deixado a sua pátria para se juntar aos nacionalistas. E por isso, deveriam de ser punidos”, relata Konstantin. “O mais novo dos dois era apenas um adolescente, não foi ele quem decidiu deixar Donetsk. Mas os russos entenderam que ele era o responsável. Eles o violentaram ainda mais”, diz.
Casos como estes acabam sendo relatados também aos profissionais de saúde. Aliona Krivouliak é psicóloga da Strada, uma organização ucraniana de direitos humanos. Ela explica que desde o início da guerra, estava preparada para receber esse tipo de testemunho.
“O primeiro relato que recebemos foi em 4 de março, em Kherson. Uma mulher nos contou que ela e sua filha haviam sido estupradas, uma na frente da outra, por soldados russos. Em 2014, já tínhamos tido este tipo de testemunho durante o conflito no Donbass. Sabíamos que novos casos iriam ocorrer agora”, indica a psicóloga.
“É difícil imaginar a verdadeira extensão de tais crimes em Mariupol, por exemplo. E não temos dúvida de que há ainda mais casos na região de Kiev”, completa.
Segundo a psicóloga, as vítimas ainda não estão prontas para falar sobre o que aconteceu com elas. Mas observa que cada vez mais os homens e mulheres agredidos querem testemunhar.
Possíveis crimes de guerra
A ONU acusou nesta sexta-feira (22) o exército russo de ações que "poderiam constituir crimes de guerra" na Ucrânia, após a invasão iniciada em 24 de fevereiro, incluindo bombardeios indiscriminados que provocaram as mortes de civis e a destruição de escolas e hospitais.
"As Forças Armadas russas bombardearam de maneira indiscriminada zonas residenciais, mataram civis e destruíram hospitais, escolas e outras infraestruturas civis, em ações que poderiam constituir crimes de guerra", declarou Ravina Shamdasani, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que tem sede em Genebra.
"Cabe a um tribunal determinar concretamente se isto aconteceu, mas cada vez há mais evidências de que foram cometidos crimes de guerra", completou a porta-voz.
Em um comunicado divulgado de modo paralelo, Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, afirmou que "durante as últimas oito semanas, o direito humanitário internacional não apenas foi ignorado, mas foi jogado ao mar". "O que observamos em Kramatorsk (leste da Ucrânia) em 8 de abril, quando a estação de trem foi atacada com munições de fragmentação e 60 civis morreram e outros 111 ficaram feridos, é emblemático da incapacidade de respeitar o princípio da distinção (entre civis e militares), a proibição de perpetrar ataques indiscriminados e o princípio da precaução, que é parte do direito humanitário internacional", destacou Bachelet, em uma acusação indireta à Rússia.
Shamdasani não descartou que o lado ucraniano também tenha violado o direito humanitário, mas a "maioria das violações, de longe, é atribuída às forças russas". A porta-voz disse que 92,3% das vítimas que as equipes do Alto Comissariado conseguiram documentar "são atribuídas às forças russas, assim como as acusações de assassinato e de execuções sumárias".
"Durante uma missão em Bucha, em 9 de abril, os investigadores de direitos humanos da ONU documentaram os assassinatos, alguns deles execuções sumárias, de 50 civis na cidade de Bucha", perto de Kiev.