Publicada em 02/04/2022 às 10h44
Há exatamente 40 anos, começava a guerra das Malvinas entre a Argentina e o Reino Unido. Após confrontos que duraram 73 dias, a Argentina foi derrotada na tentativa de recuperar o arquipélago que os ingleses invadiram em 1833. Quatro décadas depois, a aliança do atual governo argentino com o presidente russo Vladimir Putin enfraquece a reivindicação da Argentina. E a comunidade ucraniana no país recorda que descendentes de ucranianos foram lutar nas Malvinas em defesa da Argentina.
A postura argentina de não condenar veementemente a invasão russa na Ucrânia, na tentativa de uma "neutralidade", enfraquece o argumento da "integridade territorial", princípio do direito internacional que guia a reivindicação histórica do país sobre as Malvinas, 40 anos depois da guerra contra o Reino Unido.
"O governo argentino cometeu um erro maiúsculo ao não condenar com suficiente força a grosseira invasão russa na Ucrânia em total violação do princípio de 'integridade territorial', que fundamenta as campanhas diplomáticas da Argentina desde a década de 60. A Argentina considera que o Reino Unido desmembrou o nosso território ao invadir e ocupar as ilhas em 1833", indicou à RFI o ex-chanceler argentino Jorge Faurie (2017-2019).
Ao mesmo tempo, ao não condenar enfaticamente a invasão russa, o governo argentino fortalece a alegada autodeterminação dos russos de Donestk e de Lugansk. Esse argumento usado por Vladimir Putin para invadir o território ucraniano é o mesmo que a Inglaterra usa para justificar que são os 'Kelpers' (atuais habitantes das Malvinas) os que querem pertencer ao Reino Unido, um critério que visa impedir a recuperação do arquipélago por parte da Argentina.
"Nós contestamos esse argumento inglês porque a população das Malvinas não é nativa, ela foi transplantada pelo Reino Unido para justificar a anexação. A Argentina também deveria ter defendido a integridade territorial da Ucrânia, mas a reação do governo foi ambígua e continua confusa para o mundo", critica Faurie.
"O governo argentino se esquece que, ao não criticar enfaticamente a Rússia, está invalidando os dois princípios que atrapalham brutalmente a reivindicação sobre as Malvinas", sentencia, recordando que, em 2014, a então presidente Cristina Kirchner (2007-2015) também não condenou a anexação russa da Crimeia.
A comunidade ucraniana na Argentina, com cerca de 500 mil pessoas, equivalente a 1% da população argentina, critica a pretendida "neutralidade" do governo argentino. "A comunidade ucraniana na Argentina recebe muito mal a suposta neutralidade argentina. Como imigrantes há 127 anos neste país, esperávamos que o Estado argentino nos acompanhasse neste momento terrível, até porque esta comunidade contribuiu com soldados que foram lutar nas Malvinas, que foram defender a Argentina", descreveu à RFI Pedro Lylyk, cônsul honorário e presidente da Representação Central Ucrânia na Argentina.
Durante a guerra das Malvinas, morreram 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas.
Desvio na política externa Argentina
"A fonte do poder da coalizão de governo [argentino] é Cristina Kirchner, aliada incondicional de Putin. Todo o governo se comporta com a lógica de não contradizer Kirchner, quem se identifica com o sistema autoritário de Putin para contrastar com os Estados Unidos", opina o ex-chanceler argentino Jorge Faurie.
Em dezembro passado, a Argentina e a Rússia aprofundaram a "Associação Estratégica Integral" à qual tinham chegado em abril de 2015. No passado 3 de fevereiro, em plena tensão entre Washington e Moscou, Alberto Fernández visitou Putin no Kremlin, anunciando que "está determinado a fazer com que a Argentina deixe a dependência tão grande dos Estados Unidos" e ofereceu a Argentina a Putin como "a porta de entrada da Rússia na América Latina".
"Este governo argentino tem uma inclinação pela Rússia e pela China por dois motivos: um é ideológico; o outro, financeiro. E essa aliança enfraquece a reivindicação histórica de recuperação das Malvinas", explicou o ex-vice-chanceler argentino, Andrés Cisneros (1992-1996).
"Por um lado, o governo acha que a Rússia é comunista ou anti-ocidental. O 'kirchnerismo' é antissistema e vê com carinho os déspotas de todo o mundo como Putin e Xi Jinping", opina Cisneros. "Por outro lado, este governo deixou a Argentina sem crédito internacional. Agora sonha com a Rússia ou com a China a colocar dinheiro na Argentina, assim como colocaram na Venezuela", aponta.
Condenação da Inglaterra beneficiaria a Argentina
Para Cisneros, "ao apoiar a Rússia, o governo argentino apoia a autodeterminação das províncias de Donestk e de Lugansk", mas não chega a comprometer a reivindicação argentina porque "a resolução 2065 da Assembleia Geral das nações Unidas, aprovada em dezembro de 1965, determina que o caso das Malvinas é uma situação colonial".
"É verdade que a posição do governo argentino favorece a autodeterminação na Ucrânia, mas a ONU declarou que a autodeterminação não se aplica no caso Malvinas, retirando o principal argumento dos ingleses", esclareceu o ex-chanceler.
Além de 10 resoluções da Assembleia Geral, outras 39 resoluções do Comitê Especial de Descolonização da ONU determinam que os dois países retomem as negociações sobre a soberania do arquipélago.
Outro incentivo para que a Argentina condene a invasão russa é a ênfase com a qual o Reino Unido condenou a invasão russa na Ucrânia, quando invadiu as Malvinas há 189 anos, rebatizando as ilhas como Falklands.
"O governo argentino não aproveitou a invasão russa, que parece muito com a invasão inglesa. Os ingleses dizem que nunca houve uma invasão inglesa porque as Malvinas estavam vazias, mas isso é mentira. Não estavam vazias", afirma Cisneros, para quem "o governo não está mantendo os históricos princípios argentinos". "O que o governo chama de 'neutralidade', na verdade, é uma traição do que a Argentina sempre acreditou de mais profundo", lamentou.
Reivindicação adormecida
O ex-vice-chanceler Andrés Cisneros indicou que o que mais prejudica a Argentina é a sua perda de importância no cenário mundial e a falta de bons aliados. "A Argentina perdeu o respeito do mundo para discutir e o mundo não se preocupa com as Malvinas. Se a reivindicação sobre as Malvinas fosse do Brasil, as Malvinas já seriam brasileiras. É preciso ter o PIB, o peso e o prestígio como o do Brasil para que o mundo escute", compara.
"Ao longo desses 40 anos desde a guerra das Malvinas, a Argentina tem perdido peso no contexto mundial. Não podemos ser ingênuos. As Malvinas não serão recuperadas porque tenhamos razão. O mundo não se move por quem tem razão, mas por quem tem peso, potência e bons aliados. Por isso, a reivindicação argentina está adormecida e tenho muito medo de que seja para sempre", desabafou Cisneros.