Publicada em 10/08/2022 às 14h44
Há semanas, onze mães se revezam em manifestação em frente ao Fórum de Blumenau (SC), com a esperança de sensibilizar a Justiça a reverter decisões judiciais que tiraram delas a guarda dos seus filhos, encaminhados a abrigos municipais ou entregues a famílias substitutas.
Segundo a Defensoria Pública de Santa Catarina, só na cidade, ao menos 15 crianças foram retiradas do convívio familiar nos últimos meses. A principal justificativa tem sido de que as mães não têm condições socioeconômicas para criá-las em segurança.
Algumas das crianças estão há meses em abrigos municipais, sem contato com qualquer parente. Outras já foram entregues ou estão tendo os primeiros contatos, de aproximação, com potenciais famílias substitutas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que a inserção de uma criança em outra família é uma medida excepcional, que pode ser feita mediante a concessão da guarda, tutela ou adoção à família substituta. Neste último caso, a família biológica é destituída do poder familiar.
O ECA também determina que o Poder Público deve priorizar a permanência ou a reintegração da criança ou adolescente no seio de sua família biológica. Se necessário, os responsáveis deverão ser incluídos em serviços e programas de proteção, apoio e promoção.
Além disso, as condições das crianças ou adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional devem ser reavaliadas a cada três meses para verificar a possibilidade de reintegração à família biológica.
Inconsistências
Em comum, as mães acusam servidores da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (Semudes) responsáveis por elaborar os relatórios psicossociais que subsidiam as decisões judiciais de não levar em conta que elas enfrentaram dificuldades momentâneas, mas que nunca se sentiram incapazes de criar seus filhos.
“Há situações distintas, mas a maioria dessas mães é pobre, não recebe ajuda dos pais das crianças e, em algum momento, viu suas condições socioeconômicas se deteriorar - principalmente devido às consequências da pandemia da covid-19”, disse à Agência Brasil a coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB, a advogada e professora universitária Lenice Kelner.
“Algumas são ou foram dependentes químicas, mas, independentemente disso, todas dizem que não querem dar seus filhos para adoção; que têm parentes que podem ajudá-las e acusam a assistência social municipal de desfavorecê-las em seus relatórios”, acrescenta Lenice.
Mãe de três crianças, a especialista financeira Adrieli do Nascimento, 28 anos, é uma dessas mulheres. Seu filho mais novo, hoje com três anos, foi levado de casa há cerca de um ano, após o pai das crianças, de quem ela já estava separada, denunciar que ela tinha abandonado o garoto na casa da avó materna.
“Foi pura vingança. Eu trabalhava fora e pagava uma babá para ficar com meus filhos. Quando não podia deixá-los com ela, era minha mãe quem tomava conta deles. Fora isso, meus filhos sempre estiveram comigo”, garantiu Adrieli, questionando o teor das informações que os assistentes sociais forneceram ao Ministério Público estadual, órgão responsável por acompanhar os procedimentos de suspensão e destituição do poder familiar e, com base nestes, se manifestar perante a Justiça.
“Estiveram [os assistentes sociais] na nossa casa umas duas vezes. Viram que as crianças estavam comigo; que moro perto da minha mãe; que ela me ajuda, mas mesmo provando que temos condições de cuidar do meu filho, recomendaram que ele fosse levado para um abrigo”, acrescentou Adrieli.
Ela garante que tanto a babá com quem deixava os filhos, como o próprio pai das crianças, seu ex-marido, foram ouvidos no curso do processo e afirmaram que ela é uma boa mãe e que o melhor para o seu filho seria continuar junto dela e dos irmãos – hoje, com 9 e 7 anos.
“Não tenho contato com meu filho mais novo há uns três meses. Não me dão qualquer informação sobre como ele está e só sei que, recentemente, o encaminharam para uma família substituta”, queixou-se. “Não entendo por que fazer isso. Como é que me julgam capaz de cuidar dos meus dois filhos mais velhos, que continuam comigo, mas não do mais novo? Que bem pode fazer para ele estar longe da mãe, da família dele? Colocaram no relatório que eu não tive pré-natal, mas tenho todos os documentos das consultas em que estive durante a gestação”, contou Adrieli, cuja mãe, a fim de reaver o neto, chegou a pedir à Justiça o direito de ficar com o menino.
“A Justiça não aceitou, alegando que ela não tem vínculos com o meu filho, mesmo ela sendo avó, morando perto e de termos fotos e vídeos provando que eles convivem desde que ele era recém-nascido. Parece que ninguém quer ver a realidade, as provas”, lamenta a especialista financeira que, após perder a guarda do filho mais novo, passou a trabalhar de casa, por medo de que algo parecido aconteça com seus outros dois filhos. "Estou traumatizada."
Gravidade
À medida que foram se reunindo, as 11 mães passaram a buscar ajuda para tentar reaver seus filhos. Além da Defensoria Pública, procuraram a Comissão de Direitos Humanos da seccional municipal da OAB. Segundo Lenice Kelner, a entidade decidiu acompanhar o caso há algumas semanas, após receber cartas e mensagens com os relatos individualizados dessas mães.
Uma das mensagens enviadas à comissão a que a Agência Brasil teve acesso foi assinada por Carla Cristina de Melo. Solteira, ela afirma que seus filhos foram “retirados da minha casa” em 24 de fevereiro e levados para um abrigo.
“Não deixaram que fôssemos lá e o processo não respeitou as provas que apresentamos”, mesmo seu advogado “fazendo o que pôde” para demonstrar que ela desejava e tinha condições de criar seus filhos. “O estado não nos ajuda [pois] é mais fácil tirar os filhos de suas mães, prejudicando-os e violando meus direitos como mãe”, com base em um “relatório cheio de mentiras”.
“São denúncias graves. Feitas não por uma ou duas mães, mas por 11 mães que relatam fatos muito parecidos”, destaca a coordenadora da comissão da OAB, que afirma já ter participado de ao menos uma reunião com o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Alexandre Matias, que teria alegado que o trabalho dos servidores da pasta é técnico, motivado por denúncias, e retrata fielmente a situação das crianças que a rede de assistência social tenta proteger.
“Também estivemos com a juíza da Vara da Infância e Juventude de Blumenau [Simone Faria Locks], que nos assegurou que as decisões judiciais são cuidadosas. Segundo ela, se as crianças foram retiradas do seio familiar é porque houve denúncias e a Semudes reuniu provas de que as mães ou compactuam com violências contra essas crianças, ou não mandam os filhos para a escola, ou algo semelhante. Ou seja, há um impasse. Porque as mães afirmam que os relatórios da Semudes são muito pesados, chegando a apontar que por elas [as mães] serem pobres, não têm condições de criar seus filhos”, acrescenta Lenice.
Para a representante da OAB, as condições das famílias das 15 crianças e de outras que eventualmente estejam em situação parecida deveriam ser reavaliadas, levando em conta que o abrigamento ou mesmo a inserção de crianças e adolescentes em famílias substitutas é uma medida excepcional, que só deve ser aplicada em último caso.
Explosão
Para o defensor público de Blumenau Albert Silva Lima o trabalho “açodado” da Semudes vem induzindo a Justiça a decretar medidas extremas e desnecessárias.
“Muitas dessas mães enfrentaram uma condição de maior vulnerabilidade momentânea, como um desemprego ou uma situação de violência doméstica, e a superaram, mas uma vez acusadas de negligentes, não conseguiram mais manter ou reaver seus filhos.”
Lima também considera que as consequências socioeconômicas da pandemia de covid-19 deixaram uma maior parcela da população vulnerável e que situações semelhantes às vividas pelo grupo de mães de Blumenau podem estar ocorrendo em outras cidades catarinenses, já que, segundo ele, o número de adoções “explodiu” em todo o estado, nos últimos anos.
Informações divulgas no site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) dão conta de que, somente em Blumenau, 45 crianças e adolescentes foram legalmente adotadas entre março e outubro de 2020. À época, a marca foi citada como um “êxito” pela juíza da Vara da Infância e Juventude da comarca, Simone Faria Locks, que declarou que, a partir do início da pandemia, “o trabalho com as equipes de assistentes sociais foi intenso, as ações de destituição do poder familiar não pararam, audiências foram feitas pela plataforma do Tribunal e as crianças foram encaminhadas para adoção”.
Em maio de 2021, o número de adoções na cidade já chegava a 60. Na ocasião, a juíza Simone acrescentou que, com o necessário isolamento social, houve um aumento nos casos de violência, ocasionando um acréscimo expressivo nas ações de destituição familiar e, consequentemente, do total de acolhimentos registrados no município.
Além disso, um relatório que o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente divulgou em 2018 aponta que, já em 2016, quando 3.488 crianças e adolescentes foram encaminhadas a uma das unidades de acolhimento institucional então em funcionamento no estado, a acusação de negligência por parte dos responsáveis era a principal causa para a destituição do poder familiar.
“Vulnerabilidade social não é motivo para retirar um filho de uma mãe. Ainda assim, temos muito mais encaminhamentos de crianças para famílias substitutas do que casos de reintegração familiar. Sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] estabelece que a prioridade deve ser a reintegração familiar. Só em último caso, como medida excepcional, uma criança deve ser encaminhada a uma família substituta”, critica o defensor público Albert Silva Lima.
Respostas
Procurados pela Agência Brasil, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Ministério Público estadual informaram que estão legalmente impedidos de tornar público detalhes de processos específicos que, por envolverem crianças e adolescentes, correm em segredo de Justiça.
A Semudes acrescentou que o serviço de acolhimento institucional, em abrigos, ou em famílias acolhedoras “são organizados em consonância com os princípios, diretrizes e orientações do ECA” e de orientações técnicas específicas. A pasta também garante que todos os casos envolvendo crianças ou adolescentes em acolhimento são acompanhados judicialmente, e que as decisões cabem ao Poder Judiciário.