Publicada em 02/12/2022 às 12h40
Neste 2 de dezembro, Dia Internacional para a Abolição da Escravidão, a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, advogada, ambientalista e ex-empregada doméstica, denuncia o racismo estrutural nas instituições do Estado. Em entrevista exclusiva à RFI, ela afirma que, para os governantes do país, investir em territórios indígenas e de afrodescendentes significa uma perda de dinheiro.
Francia Márquez reúne quatro das principais características para a implementação de um projeto de política progressista na sociedade colombiana atual: mulher, afrodescendente, ativista ambiental e originária dos setores mais populares da sociedade. Um dos grandes combates da vice-presidente é impor à agenda política programas de justiça social. O objetivo é lutar contra a estigmatização das comunidades não brancas do país que sofrem as consequências da escravidão instaurada pela colonização espanhola.
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 1,2 milhão de pessoas são submetidas ao trabalho forçado na região da América Latina e do Caribe. Para Francia Márquez, a situação é o resultado de um modelo econômico que utilizou pessoas para fomentar um mercado.
“A forma com que pensaram esse modelo – que hoje suscita uma crise na humanidade – foi definindo quem era superior e quem era inferior. Então, definiram que nossa cor de pele preta ou escura era sinônimo de inferioridade. Que os negros e que os indígenas são ‘menos’, são minorias. E minoria não é só um conceito numérico, mas obedece a um conceito colonial”, defende.
Segundo a vice-presidente, foi criando “categorias de opressão” que os povos originários e escravizados foram inferiorizados, “assim como também definiram que as mulheres tinham menos capacidade que os homens”. Paralelamente, Márquez ressalta que a “branquitude” se definiu globalmente como superior, uma ideia que se enraizou não apenas sociedades, mas “nas instituições de todos os Estados do mundo”.
“Esse sistema de opressão que usou pessoas como matéria-prima, que as explorou e destruiu quem se opôs a ele, é o mesmo sistema que hoje está matando o planeta”, alerta.
Alerta de líderes internacionais
A vice-presidente tenta fazer ecoar essa ideia junto a dirigentes políticos internacionais. Recentemente, em um encontro com o secretário de Estado americano, Antony Blinken, ela explicou que o racismo estrutural é uma das causas da violência na Colômbia.
Segundo ela, teorias de Luis López de Mesa - considerado no século passado como um dos maiores pensadores colombianos - relacionava pátria e progresso à cor de pele dos cidadãos. O intelectual, considerado por conservadores até hoje como uma referência, defendia que a Colômbia não avançava economicamente devido à grande população de negros e indígenas.
“Se olharmos a Colômbia atualmente, os territórios negros e indígenas seguem sendo os mais excluídos. Não porque as pessoas negras e indígenas não têm capacidade, mas porque existe um racismo estrutural nas instituições do Estado, que consideram que investir nesses territórios é perder dinheiro. Ou, como disse um deputado da região de Antioquia, ‘investir nesses territórios é como borrifar perfume em excremento’”, reitera.
Márquez denuncia que as políticas públicas continuam atualmente resultando em desigualdades, porque “as regras que o sistema colonial estabeleceu são as regras de governabilidade que por anos foram mantidas”. A vice-presidente lembra, por exemplo, que quando a escravidão foi abolida na Colômbia, em 1851, famílias escravocratas foram indenizadas, “enquanto as pessoas negras libertadas foram deixadas à própria sorte”.
A líder colombiana salienta que a normalização da escravidão ocorre até mesmo nas escolas. “Quando comecei a estudar na escola primária, nos diziam que Cristóvão Colombo descobriu a América. Ninguém nos falou que, nesse momento, africanos começaram a ser trazidos para cá, para escravizá-los, rebaixá-los, desumanizá-los, expropriar a condição humana deles. Havia textos da igreja dizendo que tínhamos essa condição natural. E eu dizia que era descendente de escravos por natureza. Imagine o que significa dizer para uma criança: ‘você é descendente de escravos e vai seguir essa condição de escravidão’”, completa.
Segundo a vice-presidente, até recentemente, se propagou a ideia de que os escravizados eram “seres selvagens”. “Nunca nos disseram que nossos ancestrais, nossos avôs e avós, eram serem humanos livres que foram escravizados. Enquanto isso, a televisão colombiana, quando falava sobre o continente africano, mostrava crianças desnutridas com moscas na boca. Crescemos odiando nossa história, odiando nossas origens, odiando nossos traços, odiando nossos cabelos.”
Francia Márquez conta que essa imposição da cultura eurocêntrica levou milhões de colombianos, como ela, a recusar suas próprias origens. “Me descobri negra quanto tinha 14 anos, mas antes disso não queria ser negra, não pensava em me casar com um homem negro. Queria um homem branco de olhos azuis. Porque as referências de beleza e as famílias bonitas não eram as minhas, eram de pessoas que não se pareciam conosco. Não eram pessoas como eu”, diz.
Conflito em Cauca
A vice-presidente é originária do norte de Cauca, uma região povoada por indígenas e afrodescendentes e palco de um conflito agrário, devido à apropriação de terras por latifundiários da cultura da cana-de-açúcar. No local, o trabalho escravo é normalizado, mas também é onde a resistência “é permanente”, segundo Márquez.
“Em Cauca, se firmou o conflito armado, mas também a exclusão e, ao mesmo tempo, a visão colonial. É lá que está o maior número de fazendas escravagistas. Popayán, a capital, foi a capital da coroa espanhola e nós impregnamos, de alguma forma, tudo isso. E é um contraste porque a diversidade está lá e essa é a riqueza desta região. Cresci ao lado de indígenas, negros e trabalhadores rurais”, explica.
Com uma rica biodiversidade, a região é extremamente disputada e as políticas dos governos anteriores colocaram em conflito as diferentes comunidades e setores de Cauca, segundo Márquez. “Esse conflito não surgiu do nada e foi propiciado por quem administrou a região”, afirma, ressaltando os contrastes do local.
“Existe uma indústria que está avançando, a da cana-de-açúcar e, ao lado dela, existem algumas comunidades que basicamente se afundam nas desigualdades, que não têm água potável, não têm serviços básicos, não têm condições de uma vida digna”, denuncia.
Para ela, isso é fruto de dois modelos paralelos no mesmo território: “um modelo de exclusão e marginalidade sobre os direitos das comunidades negras, indígenas e trabalhadores rurais e outro que dá direito de progresso e desenvolvimento à indústria dos engenhos de açúcar. Essas duas visões têm gerado o conflito”, diz.
Francia Márquez está segura de que uma política de igualdade pode ajudar a lutar contra uma visão escravocrata que persiste no país, graças a décadas de administrações conservadoras. Desde agosto deste ano, ela e o presidente Gustavo Petro assumiram o primeiro governo de esquerda da Colômbia. A eleição teve a participação inédita de milhões de jovens, o que para a vice-presidente é uma prova de que a juventude do país queria um “governo de mudança”.