Publicada em 13/05/2023 às 10h07
A regulamentação das mídias sociais rendeu diversos tipos de ameaças e até “apagão” das big techs em outros países. No Brasil, o processo está recheado de polêmicas e enfrenta resistência dentro do Congresso e até do governo federal. O lobby contrário de empresas do setor, como Google e Telegram, fez o caso chegar, inclusive, até a Justiça. Nessa sexta-feira (12/5), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a abertura de inquérito para investigar diretores das mídias por suposta “conduta abusiva”.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a associar a reação das plataformas a milícias digitais. No início do mês, Moraes subiu o tom e disse que há, por parte das empresas, “ilícita contribuição com a desinformação praticada pelas milícias digitais nas redes sociais”.
As reações severas das gigantes da tecnologia, no entanto, não são exclusividade do PL das Fake News no Brasil. O Google retirou do ar uma ferramenta de notícias na Espanha, por sete anos, e ameaçou impedir o uso do buscador na Austrália. O Wikipedia promoveu um “apagão” na Itália, e o Facebook prometeu vetar conteúdos jornalísticos da plataforma na Europa. São ações em reação a medidas governamentais com foco em direitos autorais, fiscalização e remoção de conteúdos.
Contexto brasileiro
Os embates entre governos e gigantes da tecnologia sobre legislações similares ocorrem há, pelo menos, duas décadas. Cerca de 40 leis de regulação de mídias sociais foram aprovadas em vários países e outras 30 estão sendo desenvolvidas. O contexto brasileiro, no entanto, tem particularidades.
A matéria travada na Câmara dos Deputados tem cinco pontos polêmicos: quem será o responsável pela fiscalização; como será a punição das redes por veiculação de conteúdos criminosos impulsionados; como será a remuneração de conteúdos jornalísticos; se haverá imunidade parlamentar na internet; e a forma de remuneração de direitos autorais.
Especialistas consultados pelo Metrópoles avaliam que a maior parte das medidas já foi discutida e implementada em outros países. Todavia, o atual contexto brasileiro, diante da disseminação vertiginosa de fake news nas redes sociais, dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro e dos ataques a escolas, difere a situação brasileira das demais regulamentações pelo mundo.
“No caso do Brasil, temos visto essa questão ser levada a uma discussão extrema. Se pensamos na legislação similar, que existe na União Europeia (UE), vemos que nunca houve acusações que levaram a suspeitas de censura. E esse é o argumento central de toda uma ala política brasileira”, pondera o professor italiano Nicolo Zingales, de Direito e Regulação da Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV).
O especialista reforça que não é possível ignorar que a realidade do Brasil, bastante polarizada, tem gerado uma quantidade significativa de desinformação sobre o tema. Falta, segundo ele, “um esclarecimento sobre as medidas de salvaguarda para impedir uma retirada arbitrária de conteúdos”.
“Silenciamento” das plataformas
Em 2019, o Parlamento Europeu aprovou a criação do Artigo 17 da Diretiva de Direitos Autorais da UE — legislação que tornou as plataformas digitais responsáveis pelo conteúdo agregado aos sites, com foco principalmente em direitos autorais. A norma previu até junho de 2021 para adequação às regras.
Na época, o Google protestou e divulgou imagens do que seriam as páginas de buscas após as novas diretrizes. Segundo a plataforma, seria preciso evitar o uso de todo o material, como, por exemplo, miniaturas das fotos em branco e a retirada do texto prévio de visualização das matérias.
A Wikipédia, por sua vez, promoveu um “apagão” na Itália e bloqueou os leitores de acessarem as páginas, como forma de manifestar contra a lei. Anos antes, em 2014, o Google já havia encerrado a ferramenta de Notícias na Espanha, em retaliação à norma. O serviço que permaneceu indisponível por sete anos, até ser restabelecido em 2022.
Em 2021, o buscador dobrou a aposta e ameaçou retirar todo o serviço de pesquisa da Austrália, em meio às negociações sobre regras de pagamento de matérias de jornalismo. Mas o primeiro-ministro do país à época, Scott Morrison, disse que os legisladores não cederiam a “chantagens”.
Diante da falta de retorno das tentativas anteriores, os empresários testaram uma abordagem diferente no Brasil, neste mês. Foi a primeira vez que as big techs publicaram conteúdos impulsionados, como fizeram Google e Telegram na última semana, com posicionamentos contrários às propostas governamentais. As ações, inclusive, motivaram abertura de inquérito no STF.
O texto da proposta no Brasil e nos outros países em que há regulamentação sobre o tema, no entanto, é substancialmente semelhante. É o caso da Lei de Execução de Redes do país (NetzDG), aprovada em 2017 na Alemanha, que exige um procedimento eficaz e transparente para responder às demandas de remoção de conteúdo considerado ilegal.
A norma também prevê que as redes sociais publiquem um relatório de transparência bianual sobre o volume de reclamações e o volume de material removido.
“A lei NetzDG, implementada na Alemanha em 2017, se tornou um modelo para outros países, com ao menos vários países e a União Europeia implementando leis semelhantes. No entanto, ela foi criticada pelo fato de alguns potencialmente infringirem a liberdade de expressão e privacidade do usuári0″, exemplifica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM e especialista em direito digital.
Apesar da regulamentação, os embates permanecem distantes do fim. A União Europeia vive um novo problema com a mais recente Lei dos Serviços Digitais (conhecida como DSA), que se debruça sobre como as empresas recolhem e exploram os dados dos seus usuários, e vai além ao cobrar transparência sobre o funcionamento dos algoritmos.
Eventuais bloqueios e conflitos judiciais com as mídias sociais não serão simplesmente resolvidos pela norma, caso ela seja aprovada no Brasil. Ainda haverá uma série de outros debates a serem resolvidos em casos concretos.
“Mas há expectativas de que as empresas serão mais solícitas às demandas, em razão das sanções mais rígidas previstas. Provavelmente, também mais colaborativas”, considera Nicolo Zingales.
Gracemerce Camboim, professora de Direito Internacional da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, frisa que, independentemente do contexto, as normas de liberdade de expressão “não podem servir de escudo para afastar condenações, penais ou civis” diante de infrações a valores fundamentais, como democracia e dignidade humana.
Texto travado no Congresso
O PL das Fake News cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Em linhas gerais, o texto torna obrigatória a moderação de conteúdo na internet, para que postagens criminosas sejam identificadas e excluídas. O projeto deve afetar conteúdos publicados em plataformas como Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter, Google e TikTok.
Em 2020, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas enviou um ofício ao governo brasileiro manifestando preocupação com o PL 2630/2020, alegando possíveis violações à liberdade de expressão e os riscos de decisões de retirada de conteúdo arbitrárias.
No texto, o relator da ONU para Liberdade de Expressão, David Kaye, avalia que o projeto parecia ser “extremamente problemático” em relação a temas como censura, privacidade, estado de direito e devido processo legal, entre outros.
Desde então, a matéria passou por modificações, mas ainda enfrenta dificuldades na tramitação na Câmara dos Deputados, como mostrou o Metrópoles. O texto não agrada a oposição, que afirma que, se aprovado, o texto pode ser ferramenta para a censura.
Com o impasse no Legislativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir antes do Congresso sobre regulamentação das big techs.