Publicada em 19/04/2024 às 14h13
Por Vinicius Valentin Raduan Miguel**
Porto Velho, RO – No Reino Unido, nos anos 1970 e 1980, ocorreu uma das mais controversas práticas médicas da história recente: crianças foram utilizadas como cobaias em ensaios clínicos envolvendo produtos sanguíneos infectados, provenientes em sua maioria dos EUA.
A estimativa é que cerca de 30 mil pessoas foram infectadas com hepatite C e/ou HIV. Destas, mais de 300 crianças, em sua maioria, pessoas hemofílicas.
Um terços dos contaminados por HIV eram crianças.
Recentemente, documentos obtidos pela BBC, agência de jornalismo britânica, revelaram o verdadeiro alcance dessas provações, que desafiaram as normas éticas, mas também custaram (e custam) vidas.
Os testes foram realizados majoritariamente em crianças com distúrbios de coagulação, muitas vezes sem o consentimento de seus responsáveis.
Centenas de crianças foram infectadas com hepatite C e HIV, em um período em que a escassez de produtos sanguíneos que levou à importação de plasma de doadores de alto risco dos Estados Unidos, incluindo pessoas em privação de liberdade e de dependentes químicos de drogas ilegais.
Luke O'Shea-Phillips, uma das vítimas sobreviventes desses experimentos, foi exposto ao vírus da hepatite C aos três anos, em uma tentativa de avaliar a eficácia de um tratamento térmico no Fator VIII, um produto sanguíneo então conhecido por sua contaminação.
A pesquisa, no entanto, concluiu que o tratamento proposto teve "pouco ou nenhum efeito" na redução do risco de transmissão de hepatite C.
Esta revelação foi feita tarde demais para muitos, como Gary Webster e outros alunos da escola Treloar, que se tornaram parte de estudos clínicos sem o conhecimento ou consentimento deles ou de seus genitores.
A prática de usar pacientes como nada mais que 'ratos de laboratório', muitas vezes sem sua plena consciência ou aprovação, destaca um capítulo sombrio na história médica atual e levanta questões sobre ética na pesquisa e sobre o comércio de hemoderivados.
Não apenas os direitos de pacientes foram violados, mas a sua saúde foi comprometida em nome de um alegado avanço científico — uma troca que nenhuma sociedade justa pode se dar ao luxo de aceitar.
Um inquérito público está em curso no Reino Unido e deve lançar luz sobre as injustiças ocorridas, mas também garantir que tais erros não se repitam e suas vítimas e familiares sejam indenizados.
As questões de consentimento mudaram significativamente desde os anos 1980, porém, a dor e o dano causados ainda reverberam entre as vítimas e seus familiares, que continuarão a sofrer as consequências dos eventos que alteraram suas vidas irrevogavelmente.
A necessidade de regulamentações e transparência em ensaios clínicos nunca foi tão evidente, e a comunidade científica deve observar e aprender com estas falhas do passado.
**O autor é advogado, sociólogo. Especialista em Administração Pública (CIPAD-FGV). Doutor em Ciência Política (UFRGS).