Publicada em 22/08/2024 às 09h03
Oficiais alegam que novos soldados não receberam treinamento adequado; há casos de recrutas que fugiram do combate. Guerra entre o país e a Rússia se arrasta desde 2022.
Recrutas das forças armadas da Ucrânia estão se recusando a atirar contra inimigos russos em frentes de batalhas, apontam relatos de comandantes e companheiros de combate divulgados nesta quinta-feira (22) pela agência de notícias Associated Press (AP).
Segundo os relatos, alguns novos soldados têm dificuldades para montar armas ou coordenador movimentos básicos de combate. Há recrutas que chegaram a abandonar seus postos, saindo completamente do campo de batalha. A guerra entre o país e a Rússia se arrasta desde fevereiro de 2022.
Enquanto a Ucrânia continua a incursão na região de Kursk, na Rússia, as tropas estão perdendo terreno ao longo da frente oriental do país. Comandantes ouvidos pela AP atribuíram a perda, em parte, aos recrutas mal treinados, além da superioridade da Rússia em munição e poder aéreo.
“Algumas pessoas não querem atirar. Elas veem o inimigo em posição de tiro nas trincheiras, mas não abrem fogo. É por isso que nossos homens estão morrendo,” disse um comandante de batalhão da 47ª Brigada da Ucrânia, em tom de frustração. “Quando eles não usam a arma, são ineficazes.”
Os relatos são de comandantes e soldados que falaram à AP sob condição de anonimato para discutir questões militares sensíveis. Outros falaram sob a condição de serem identificados apenas por seus nomes de guerra, de acordo com o protocolo militar ucraniano.
Soldados ucranianos relutam em atirar contra russos
Os comandantes afirmaram que os recrutas contribuíram para uma série de perdas territoriais que permitiram que o exército russo avançasse, inclusive nas proximidades da cidade de Pokrovsk, um importante centro logístico.
Conforme eles, se a cidade for tomada, a derrota colocará em risco as defesas ucranianas e aproximará a Rússia de seu objetivo declarado de capturar a região de Donetsk. As tropas russas estão a apenas 10 km de distância.
Os ucranianos recentemente recrutados estão longe dos combatentes experientes que se alistaram no primeiro ano da invasão em grande escala. As novas tropas carecem até mesmo de um nível mínimo de treinamento, disseram comandantes e soldados de quatro brigadas que defendem a área de Pokrovsk.
Eles descreveram ter que planejar operações com infantaria que é incapaz de atirar em alvos e desinformada sobre topografia básica. Alguns recrutas simplesmente não acreditavam nos planos de batalha de seus superiores e abandonaram posições preparadas.
Frustrados com a qualidade dos novos recrutas enviados para a linha de frente pelos centros de recrutamento territorial, os comandantes estão agora buscando conduzir suas próprias mobilizações para melhor selecionar e treinar novos combatentes, disseram vários comandantes e soldados.
“O principal problema é o instinto de sobrevivência dos novatos. Antes, as pessoas podiam resistir até o último momento para manter a posição. Agora, mesmo quando há um bombardeio leve das posições de tiro, eles estão recuando,” disse um soldado da 110ª Brigada.
Nem todos estão se virando e fugindo da batalha, ele acrescentou. “Há pessoas motivadas, mas são muito, muito poucas,” disse. “A posição é mantida na medida em que há essas pessoas que são motivadas e comprometidas.”
Após a implementação de uma lei de mobilização em maio, que estabeleceu regulamentações mais claras para os centros de recrutamento territorial, a Ucrânia está supostamente recrutando dezenas de milhares de combatentes por mês. A demanda é maior na infantaria.
Mas existem obstáculos logísticos para treinar, equipar e pagar tantas pessoas que chegam, e os comandantes constantemente exigem novos soldados. Para aliviar essa pressão, os líderes militares tiveram que retirar unidades de brigadas em uma região e transferi-las para áreas diferentes para estabilizar pontos fracos.
Alguns apontam o dedo para os comandantes, que culpam os recrutas recentes pelas perdas.
Viktor Kevliuk, um especialista militar da Ucrânia, disse que o treinamento oferecido aos recrutas é adequado. Ele disse que os comandantes de brigada “estão procurando uma explicação para as falhas táticas.”
“Da mesma forma, o comandante de brigada tem as ferramentas apropriadas para influenciar o moral. Se todos esses processos estiverem estabelecidos na brigada, não haverá problemas significativos. Se esses mecanismos falharem, lemos sobre a negatividade nas redes sociais,” acrescentou.
E em combates intensos, como o de Pokrovsk, Kevliuk disse que “são as decisões táticas oportunas dos comandantes que fazem a diferença".
Fuga do combate
Em alguns casos, recrutas novos e aterrorizados fugiram do combate, informaram as fontes da AP. “Esse medo cria pânico e caos,” disse o comandante de batalhão da 47ª Brigada. “Esse também é o motivo pelo qual perdemos.”
A perda da vila de Prohres no mês passado, na região de Pokrovsk, é o exemplo mais recente de perda territorial atribuída aos novos recrutas, disseram os comandantes. Unidades da 31ª Brigada saíram em um frenesi mal coordenado, levando a 47ª Brigada a entrar na batalha e tentar estabilizar a linha. Um cenário semelhante se desenrolou na vila de Ocheretyne, em maio.
Não se faz o suficiente para treinar os novatos, disse o comandante de batalhão. “Eles não recebem nem o padrão mais baixo de treinamento exigido para nossas [ações de combate],” disse.
Os novos recrutas não têm prática suficiente para montar e atirar com seus fuzis, afirmou o comandante. Eles também não aprenderam a coordenar tarefas de combate em pequenos grupos ou a usar até mesmo táticas simples.
“Do ponto de vista do comando, gostaria de emitir ordens para pequenos [grupos de infantaria], mas não tenho certeza se eles são capazes de executar essas ordens porque faltam coordenação e comunicação,” disse ele. “Às vezes, eu mesmo quero atirar.”
A repentina incursão da Ucrânia na Rússia inicialmente despertou esperanças de que o Kremlin pudesse ser forçado a dividir seus recursos militares para responder. Mas, até agora, as forças russas não vacilaram em seu avanço em direção a Pokrovsk e outras possíveis conquistas.
Enquanto isso, o avanço relâmpago da Ucrânia em território russo desacelerou após duas semanas, fazendo apenas pequenos ganhos, um possível sinal de que Moscou está contra-atacando de maneira mais eficaz.
Comandantes no leste relatam que as batalhas só se intensificaram desde a incursão. Autoridades locais ordenaram na segunda-feira (19) que os quase 53 mil residentes de Pokrovsk evacuassem dentro de duas semanas. Na cidade vizinha de Myrnohrad, ainda mais próxima das posições russas, os residentes foram informados de que tinham apenas alguns dias.
A captura de Pokrovsk prejudicaria as rotas de abastecimento da Ucrânia para a região de Donetsk e facilitaria o avanço da Rússia para as cidades orientais de Sloviansk e Kostiantynivka. Também marcaria a primeira grande vitória estratégica da Rússia após meses de ganhos marginais dolorosos.
Disputas
Nos últimos três meses, a maioria das perdas territoriais ucranianas foram registradas na área de Pokrovsk, segundo três grupos de monitoramento de fontes abertas, com intensificação dos combates nas proximidades das cidades de Toretsk e Chasiv Yar. As forças russas aumentaram os ataques na tentativa de capitalizar o cansaço e a escassez de tropas.
A ofensiva também teve um custo para Moscou, com cerca de 70 mil tropas perdidas em dois meses, de acordo com o Ministério da Defesa do Reino Unido, que publicou a projeção no mês passado no X. Perdas pesadas continuaram à medida que as forças russas se aproximam gradualmente de Pokrovsk a partir do leste e do sudeste.
Outro desafio para a Ucrânia é uma nova tática na qual a Rússia usa pequenas unidades de infantaria de dois a quatro homens. Isso confundiu os operadores de drones ucranianos, que acham difícil detectá-los, de acordo com um operador de drones da 25ª Brigada que usa o codinome Groot.
“Essa é uma das principais razões para o sucesso da Rússia em Pokrovsk,” disse ele. “É mais difícil detectá-los,” especialmente sob a cobertura de árvores folhosas. “Assim que a infantaria chega sob as linhas de árvores, é realmente difícil tirá-los de lá com drones, e é por isso que dependemos muito de nossa infantaria.”