Publicada em 14/08/2024 às 15h21
A Ucrânia aumentou a pressão sobre o sul da Rússia, região que invadiu na semana passada, criando uma dinâmica inédita na guerra iniciada por Vladimir Putin em 2022. Antecipando um ataque, o governador de uma das regiões afetadas decretou emergência regional e pediu que o Kremlin faça o mesmo em nível federal.
Já em território ucraniano, os russos registraram um avanço significativo no leste do país, chegando a 15 km do importante centro ferroviário de Pokrovsk e se aproximando de Tchasiv Iar, em Donetsk. Os movimentos visam a tomada final da região, dividida entre Kiev e separatistas pró-Rússia desde 2014.
Tudo isso mostra uma atividade militar frenética em uma guerra descrita por muitos como estática. Ainda é incerto o objetivo estratégico de Volodimir Zelenski com sua invasão na Rússia, a primeira desde que os nazistas entraram na União Soviética em 1941.
Nesta terça, o presidente ucraniano disse que suas forças seguem avançando, a despeito do contra-ataque de Putin na véspera. "Estamos aumentando nosso fundo de troca", disse, em referência ao anúncio de que havia tomado mais cem soldados russos como prisioneiros.
Para além da retórica, Kiev providenciou provas de que operam dentro de Sudja, o centro final de distribuição de gás russo para a Europa. Uma equipe de reportagem da rede TSN que acompanha as tropas filmou soldados trocando a bandeira russa pela ucraniana em um prédio da cidade.
Outros vídeos mostram colunas ucranianas passando por moradores da região, com ao menos um gritando "Viva a Ucrânia" para os invasores. Soldados de Kiev têm postado no Google avaliações bem-humoradas e irônicas de cafés e restaurantes pelos quais passam. "Não tem lugar para estacionar meu tanque", queixou-se um deles.
Os combates seguem duros, segundo relatos de ambos os lados. Os ucranianos lançaram um mega-ataque com 117 drones, todos derrubados segundo a Rússia, durante a noite. Foram atacados pontos das vizinhas Kursk, Belgorodo e Voronej, alem da bem mais distante Níjni-Novgorodo.
Pelos vídeos disponíveis na internet e informações da inteligência ucraniana vazadas à imprensa do país, os alvos primários eram quatro bases aéreas de onde saem aviões como os caças MiG-31K que lançam mísseis hipersônicos contra a Ucrânia. Não há relatos ainda de danos.
Em Kursk, os ucranianos disseram ter derrubado um avião de ataque Su-34. A defesa da região foi inicialmente confiada ao FSB, o serviço sucessor da KGB soviética, mas nesta terça deputados relataram que Putin indicou seu antigo guarda-costas, Alexei Diumin, hoje secretário do Conselho de Estado, para comandar a ação.
Há sinais de que a Ucrânia está ampliando o escopo de sua operação. Segundo um analista militar disse à Folha, há concentração de tropas em território ucraniano ao sudeste de Belgorodo, a capital da região homônima, que é vizinha de Kursk, o alvo inicial da invasão de Kiev há uma semana.
Isso e a ação na área de Sudja, que fica mais ao norte, sugerem que talvez Zelenski esteja planejando um ataque à cidade.
Se isso acontecer de forma bem-sucedida, será um enorme revés para Putin, dado que não estamos falando de vilarejos fronteiriços, e sim um importante centro urbano com mais de 400 mil habitantes numa região que concentra 40% da produção de minério de ferro russa.
Com efeito, nesta terça o governador regional, Viacheslav Gladkov, decretou emergência regional. "A situação em Belgorodo continua extremamente difícil e tensa", escreveu no Telegram, queixando-se de mortes de civis nos já constantes ataques com drones e mísseis.
Insinuando uma rara pressão mirando Putin, Gladkov disse que o Kremlin deveria fazer o mesmo, decretar emergência, em nível federal. É uma discreta cunha na relação das áreas afetadas com Moscou, que já havia ganhado destaque quando o presidente interrompeu abruptamente o colega de Gladkov em Kursk, Alexei Smirnov, numa reunião televisionada.
Ambas as regiões estão agora em emergência, o que implica restrição de movimentos e de direitos individuais. Ao menos 191 mil pessoas foram ordenadas a deixar suas casas.
Do ponto de vista estratégico, Zelenski segue apostando alto. Reportagens mostram que soldados empregados na invasão vieram de regiões como Tchasiv Iar, que estão sob intensa pressão russa. Eles mesmo se mostraram surpresos, mas isso indica que a invasão não foi um diversionismo de Kiev.
O risco é óbvio, como os avanços russos na Ucrânia demonstram, e pode indicar que Zelenski quer uma peça de barganha territorial em suas mãos em uma eventual negociação de paz. O fato de falar de prisioneiros como "fundo de troca" é outro indicativo disso.
Tais conversas vinham acontecendo, mas enfrentavam a inflexibilidade de lado a lado: Putin quer os 20% que já ocupa da Ucrânia e sua neutralidade, enquanto Zelenski não admite perder nada. Com um naco mínimo do maior país do mundo na mão, terá o que negociar, restando contudo saber se a Rússia toparia isso.
O próprio presidente russo já disse que esse é um objetivo da ação ucraniana, sugerindo que não aceitará a troca, até porque uma coisa é invadir, outra é manter a conquista do território. Isso demanda mais forças de que Kiev dispõe sem sacrificar a defesa de outras frentes em seu próprio solo.
Por ora, os reforços russos que chegam a Kursk incluem reservas e também conscritos, que não podem por lei lutar na Ucrânia porque não há uma guerra declarada, e sim a tal "operação militar especial".
A Lituânia relatou ter visto movimentos de tropas de Kaliningrado, exclave russo entre o país e a Polônia, rumo à região invadida. Ainda assim, segundo relatou o analista russo à reportagem, boatos de uma nova mobilização russa voltaram a surgir.