Publicada em 24/10/2024 às 11h34
A Baía de Guanabara, na região metropolitana do Rio de Janeiro, representa um paradoxo no imaginário popular. De um lado, é associada à poluição. De outro, um cartão postal do Rio, banhando o Pão de Açúcar, a ilha de Paquetá e com vista para o Corcovado, onde fica a estátua do Cristo Redentor, e para o Dedo de Deus, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos.
Na região conhecida como fundo da baía, longe dos olhos de quem atravessa os 13 quilômetros da Ponte Rio-Niterói, ficam extensões de manguezais – um ecossistema tido como lamacento que faz a transição entre os ambientes marinho e terrestre.
A conservação dessa vegetação, essencial para mitigar as mudanças climáticas, é uma atividade ambiental sustentável que mudou a rotina de pescadores e dos tradicionais catadores de caranguejos que se desenvolvem nesse ecossistema.
Nilo Ferreira Filho tem 72 anos. A vida toda foi pescador na região de Magé, cidade da região metropolitana do Rio que fica “no fundo” da Baia de Guanabara.
Depois de décadas acostumado a chegar em terra com centenas de quilos de peixe no barco, ele exercia outra atividade em uma manhã de outubro: conduzia turistas ecológicos para uma imersão em manguezais próximos à Praia de Piedade.
“Preservar o manguezal é bom para criar os peixes. Tem que preservar. É onde conseguimos o sustento. É muito bonito”, diz ele, que entende a associação entre o mangue conservado e a produção de peixes.
Cerca de 80% das espécies de peixes, crustáceos e moluscos dependem desse ambiente em alguma fase de vida, segundo a oceanógrafa Liziane Alberti, especialista em conservação da biodiversidade na Fundação Grupo Boticário – instituição sem fins lucrativos do Grupo Boticário dedicada à proteção da natureza.
Carlos Eduardo Antônio de Paula, de 46 anos, é outro pescador nascido e criado em Magé. Ele também participou da expedição aos manguezais, transportando turistas em um barco a remo. Para ele, levar visitantes à região, além de fonte de renda, é uma forma de mostrar a realidade pouco conhecida do manguezal:
“Manguezal é uma parte da minha vida. Quem fala mal do manguezal, não sabe o que está falando. A lama do mangue não é contaminada, não. Se não, a gente não comeria crustáceos, caranguejo, siri e peixe. Enquanto eu viver, quero viver aqui”, disse à Agência Brasil.
“Esse negócio de passeio turístico é uma novidade, mais uma forma de sustento”, completa.
Magé (RJ) - Grupo de colhereiros (Platalea ajaja) em manguezal na Piedade banhado pelo Rio Majé - Fernando Frazão/Agência Brasil
É comum entre os barqueiros pescadores se referir ao solo dos mangues como substrato, em vez de lama, para diminuir o estigma existente.
A pescadora artesanal Lucimar Machado, fundadora dos Projetos Luthando pela Vida e Remando o Manguezal compartilha da visão de que o turismo ambiental é uma forma de mostrar a real beleza dos manguezais.
"A gente preserva e quer que as pessoas venham aqui e nos ajudem a divulgar e a preservar esse ambiente, porque a gente vive desse ambiente", explica à Agência Brasil.
Turismo de base comunitária
Guapimirim (RJ) - Biólogo Pedro Belga na Estação Ecológica da Guanabara - Fernando Frazão/Agência Brasil
De acordo com Pedro Belga, fundador e presidente da organização não governamental (ONG) Guardiões do Mar, 650 famílias são cadastradas na Baia de Guanabara como catadoras de caranguejo, animal que vive nos mangues. As que vivem da pesca são 5 mil, com rendimento médio pouco superior a R$ 2 mil mensais.
Lucimar descreve a atividade dos pescadores como “turismo de base comunitária”. “A gente faz passeios de caiaque, levando as pessoas para ver a retirada de peixes dos currais (armadilha feita com bambu), para ver botos".
"Às vezes eu vou em alguns eventos, e as pessoas falam 'o fundo da baía é podre, tudo sujo'. Então eu falo 'você acabou de ganhar um passeio de caiaque para conhecer'. As pessoas vêm querendo provar que está tudo sujo e quando chega aqui, se apaixonam pela beleza do local", conta ela, que também vende artesanato, como brincos feitos de escamas de peixe.
Um dado que mostra o potencial de crescimento desse turismo ecológico é que 83% dos brasileiros sabem o que são manguezais. No entanto, 58% nunca os visitaram.
Magé (RJ) - Ecoturismo no manguezal da Piedade - Fernando Frazão/Agência Brasil
A informação faz parte da publicação Oceano sem Mistérios: carbono azul dos manguezais, divulgada nesta quinta-feira (24) pelo projeto Cazul, ligado à Guardiões do Mar.
O levantamento foi lançado durante a 16ª Conferência de Biodiversidade da Organização das Nações Unidas (COP 16), que acontece até o dia 1º de novembro em Cali, na Colômbia. O trabalho científico e ambiental é apoiado pela Fundação Grupo Boticário.
Restauração
Alaildo Malafaia tem 62 anos. Há mais de 40 anos trabalha com a pesca na Baía de Guanabara. Há 16 anos, passou a atuar na Cooperativa Manguezal Fluminense, que ele preside. A instituição é parceira da Guardiões do Mar e atua na conservação e recuperação dos manguezais.
“Quando eu era pescador, eu vivia do recurso natural. Hoje eu trabalho para perpetuar a existência do recurso natural.”
“Quando a gente planta mangue, a gente está gerando bioeconomia. Quando a gente faz o turismo de base comunitária, está gerando bioeconomia. O artesanato, nós estamos gerando bionomia”, comenta.
A oceanógrafa Liziane Alberti também enaltece a iniciativa de desenvolvimento sustentável. “Os manguezais também são valiosos para a economia, por exemplo: a pesca artesanal e o turismo são apenas algumas das atividades que se beneficiam da saúde desses ecossistemas”.
“O turismo sustentável tem esse potencial de fazer com que a gente preze cada vez mais pela conservação desses ambientes. A comunidade também percebe valor nesse turismo e, com isso, vira um aliado para conservação”, completa Liziane.
Conhecimento tradicional
Além de pescadores como os da cooperativa serem um braço no trabalho de restauração, a oceanógrafa acrescenta a importância dos saberes tradicionais dessas comunidades.
“As comunidades tradicionais têm um potencial de conhecimento. Carregam um conhecimento tradicional muito rico que é muito importante. Afinal, elas que sabem certinho como funciona a maré e os períodos em que os animais se reproduzem. Elas estão no dia a dia nesse ambiente, conhecem melhor que a gente. Então, é muito importante associar todo o conhecimento científico com o conhecimento tradicional”, disse à Agência Brasil durante expedição em manguezais próximos à Praia de Piedade.
Lucimar, com experiência de anos em pesca artesanal, conta como o conhecimento tradicional pode contribuir para a restauração dos mangues:
“Às vezes, quando a gente consegue investimento para poder cuidar de manguezal, fazer um replantio, uma limpeza, a maioria das empresas já traz essas pessoas de fora, e elas não conhecem aqui. Ficam perdidas ou fazem coisas que não é para fazer. Tem que chamar as pessoas locais, porque somos nós que vivemos dentro do mangue. A gente sabe como é que cuida disso”.
Como prova, Malafaia, da cooperativa, cita uma técnica criada pelos restauradores locais que se mostrou eficaz no esforço de conservação.
“A outra ONG com quem tínhamos parceria produzia mudas no viveiro. Quando levávamos para o campo, perdia-se mais de 50% dessas mudas. Na nossa expertise como pescadores, começamos a pegar os plânctons debaixo da planta mãe, tirar da sombra e levar para a luz, eles não morriam”, descreve.
"O conhecimento empírico é fundamental na regeneração natural do manguezal", diz ele, que é convidado para dar palestras sobre restauração de manguezais.