Adaides Batista
Publicada em 03/02/2022 às 13h40
Recebemos a triste e lamentável notícia que o Bar do Canto fechou as portas. Agora só nos resta lembrar o que foi o Bar do Canto para nossa cidade de Porto Velho. Na verdade, o verdadeiro Bar do Canto já tinha fechado há muito tempo, desde quando – no reparte da herança da tradicional família - o tradicional ponto ficou para o irmão Ivo, ex-boêmio e cristão católico praticante que depois que parou de beber passou a detestar bebida alcóolica e muito mais conversa com bêbado, o que lhe levou encerrar as atividades de bar e continuou o comércio, que o pai Pedrinho deixou, no ramo da alimentação, diga-se de passagem, o Ivo é um excelente chef, inclusive, é bom registrar, a receita do famoso bola Moca do Bar do Canto, é do Ivo. Em tempo, o Bar do Canto fecha e ficamos sem o melhor bolo Moca da cidade.
Pois bem, não era mais o bar, mas o restaurante/lanchonete manteve a marca: Bar do Canto, e assim, manteve a tradição para a alegria dos porto-velhenses, que trazem na vida e na alma aquele local como um ponto de referência de encontros e bate-papos saudáveis e criativos. O Bar do Canto era uma referência.
Dentre as tantas referências do Bar do Canto vou relatar uma. No Bar do Canto nasceu o Movimento de Criação Cabeça de Negro que na década de 80 e nos primeiros anos da década de 90, do século XX, agitou a cidade de Porto Velho defendendo a igualdade racial e o respeito pela cultura ribeirinha cabocla que naquele momento sofria a invasão de levas de migrantes de todas as regiões do Brasil, cada uma trazendo a cultura da sua região. Defender a nossa era necessário.
Numa tarde quente de sábado, saio de casa, no Areal, e vou ao Bar do Canto, em busca de cerveja gelada e um bom papo. Na época, o gerente do Bar do Canto, era o poeta Mado. Vivíamos o momento da redemocratização no país e o poeta Mado tinha transformado o Bar do Canto num ponto de debates em prol da democracia. Todas as cabeças de esquerda e as malucas se encontravam no Bar do Canto para defender suas ideias lutando para esmagar de vez a ditadura militar. Devido o local ser permanente frequentado pelos revolucionários e libertários, também era ponto, obvio, da polícia federal.
O Bar do Canto encarnava todos os anseios daquela juventude e daquela gente que começava a sentir o cheiro e o gosto da democracia. Jornais independentes, livros antes censurados agora liberados, músicas antes proibidas agora liberadas, tudo isso rolava no Bar do Canto. E rolava muito mais porque a moçada era produtiva então logo se armava um projeto de show, um projeto de sarau, inclusive, lá foi pensado e realizado o livro “Papo de Taberna” – uma coletânea de poesias dos poetas frequentadores do Bar, inclusive, o saudoso, Flávio Carneiro.
Ali se reunia para debater praticamente os artistas da cidade de todas as áreas. Ilustrando as paredes do Bar do Canto cópias ampliadas coloridas de quadros com tema libertários como o do pintor francês Eugène Delacroix “A liberdade guiando o povo”, ou o do pintor italiano Giuseppe Pellizza da Volpedo “O Quarto Estado”; as músicas que rolavam iam do experimentalismo de Arrigo Barnabé e Itamar Assunção até o último LP, na época, do Milton Nascimento – Encontros e Despedidas.
Retomando, numa tarde quente de sábado, saio e vou direto para Bar do Canto. Duas para três horas da tarde. O bar ainda não estava no auge. Poucas pessoas. Numa mesa do lado de fora, pela Av. Carlos Gomes, numa mesa sozinho estava o Jeshuá Jonhson, o Bubú. Recentemente naquela época tínhamos participado de um debate sobre a questão do negro no Brasil na Universidade Federal de Rondônia. Pensei: - ótima companhia. E fui me sentar à mesa com o Bubu.
Conversamos bastante sobre cultura principalmente quanto a luta do negro no Brasil por igualdade racial. Ele me falou de sua experiência no “Grupo Tez” no qual militou em Campo Grande, que era um braço do Movimento Negro Unificado – MNU, e lhe falei da minha experiência na militância no Movimento Alma Negra – MOAN em Manaus (AM), o qual fui um dos fundadores e primeiro presidente.
Conversa vai, conversa vem, falei para o Bubu que estava ensaiando um show, de músicas, no Sesc, com a chancela do movimento “Grito de Cantadores”, com o apoio do Júlio Iriarte que inclusive era quem estava fazendo os arranjos das músicas. O show era o “É preciso Gritar” que tinha sido elaborado em Manaus, com 14 músicas autorais; e quando estava começando a ensaiar, terminei o curso de Comunicação Social e tive que voltar para Porto Velho.
Falei que os ensaios já estavam rolando no Sesc e convidei o Bubu para participar como produtor e diretor no show. Ele topou e começou a ir participar dos ensaios no Sesc. O Bubu chegou com várias ideias e o show acabou saindo do Sesc e foi produzido e dirigido por nós mesmos com outras pessoas e artistas que se juntaram a nós naquele momento. O show que era “É preciso Gritar” passou a se chamar “Cabeça de Negro” e os textos e as músicas voltadas para a questão negra. Desse show nasceu o Movimento de Criação Cabeça de Negro.
Foi no Bar do Canto que nasceu o “Cabeça de Negro” ...
Foi no Bar do Canto que nasceu o livro de poesias “Papo de Taberna” ...
Foi no Bar do Canto que conheci o teatrólogo professor Bedotti...
Foi no Bar do Canto que escutei “Tubarão Voadores” de Arrigo Barnabé...
Foi no Bar do Canto que dei de presente ao amigo poeta Mado o livro “Folhas de Relva” do Walt Whitman...
Foi no Bar do Canto...
Adaides Batista – Dadá
É jornalista, poeta e compositor popular
URL: https://rondoniadinamica/noticias/2022/02/foi-no-bar-do-canto-por-adaides-batista-dada,123812.shtml