Vinicius Valentin Raduan Miguel e Raduan Miguel Filho
Publicada em 09/09/2024 às 11h20
Vinicius Valentin Raduan Miguel e Raduan Miguel Filho
Previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, o ANPP oferece uma alternativa processual que permite a suspensão ou não proposição da ação penal em crimes sem violência grave e com pena mínima inferior a quatro anos.
Esse instituto visa a desburocratização e agilização do sistema penal, promovendo maior eficiência na resolução de conflitos.
No entanto, sua aplicação no contexto eleitoral, pela primeira vez sendo utilizado, especialmente em casos envolvendo candidatos ou agentes públicos.
Nesta leitura, aqui resumida, pretende-se um olhar interseccional entre o Direito Penal e a Política Democrática.
A análise do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), sob uma perspectiva influenciada pelo pensamento de Luigi Ferrajoli e Norberto Bobbio aqui proposta, levará em consideração além de seus efeitos imediatos no âmbito do Direito Penal, mas também suas implicações mais profundas no campo da democracia, dos direitos fundamentais e da legitimidade do processo eleitoral.
Ferrajoli, em sua obra sobre o garantismo penal, argumenta que o Direito Penal deve ser orientado pela máxima proteção das garantias individuais.
O ANPP, como um mecanismo alternativo de resolução de conflitos penais, surge como uma expressão dessa lógica garantista, ao permitir que se evite o punitivismo excessivo sem desrespeito à legalidade.
Entretanto, o uso dessa ferramenta no contexto eleitoral suscita dúvidas e questões sobre a transparência e a ética no trato com a coisa pública, questões estas que Bobbio identificaria como fundamentais para a manutenção de uma democracia robusta.
Do ponto de vista garantista, o ANPP pode ser visto como uma evolução necessária do sistema penal, na medida em que promove a um passo só, a economia processual e a redução do encarceramento desnecessário.
Todavia, ao aplicarmos essa racionalidade à esfera política, surge a tensão (ou aparente colisão) entre a proteção dos direitos fundamentais individuais e o interesse coletivo por uma gestão pública pautada na ética e escorada na moralidade administrativa.
A celebração de um ANPP por agentes públicos e/ou candidatos a cargos eletivos, ainda que juridicamente legítima, não deixa de gerar impactos sobre a confiança do eleitorado.
Pode ser, não menos, percebido como uma forma de evitar o julgamento e a responsabilização perante a sociedade, mesmo que sem resultar em uma condenação formal.
Para Bobbio, uma democracia funcional depende da confiança mútua entre governantes e governados, e qualquer prática que abale essa confiança coloca em risco os princípios democráticos.
A partir desse ponto, podemos analisar o impacto e custos políticos do ANPP sobre a elegibilidade e o discurso político de candidatos sob a ótica do compromisso democrático e da ética pública, que Bobbio enfatiza como pilares centrais da vida republicana.
A Lei da Ficha Limpa, concebida para proteger a moralidade pública, permite que o ANPP, por não configurar uma condenação, preserve a elegibilidade de candidatos que celebrem o acordo.
No entanto, essa preservação jurídica pode não ser suficiente para evitar os danos eleitorais e custos à imagem de uma candidatura, uma vez que, do ponto de vista da ética pública, o eleitorado (ou adversários) pode(m) enxergar na formalização do ANPP uma admissão de culpa, mesmo que formalmente não seja uma sentença condenatória.
Assim, o discurso de legitimidade democrática é confrontado com a tensão entre o direito individual de defesa e o direito coletivo de contar com governantes de conduta ilibada.
Ademais, a confissão de fatos, exigida para a celebração do ANPP, acarreta profundas implicações morais.
Como Ferrajoli sugere, o reconhecimento dos fatos pode servir como mecanismo de pacificação social e de resolução de conflitos com o mínimo de intervenção punitiva.
Contudo, no âmbito eleitoral, essa confissão pode ser instrumentalizada por adversários políticos para descredibilizar um candidato, criando uma percepção negativa que transcende o campo jurídico e adentra a arena política.
Uma análise sobre o poder e a moralidade pública nos acende o alerta para o perigo de se utilizar ferramentas jurídicas como o ANPP de maneira que comprometa a integridade do processo eleitoral, transformando o espaço político em uma arena de manipulações discursivas que subvertem os princípios democráticos.
Por fim, o ANPP, na intersecção entre o Direito Penal e o processo eleitoral, traz ao debate uma das tensões centrais apresentados nos textos de teoria política de Bobbio: a relação entre o poder e a legalidade, entre a forma jurídica e a substância democrática.
Se, de um lado, o ANPP é uma manifestação do garantismo penal, de outro, sua aplicação e efeitos no campo eleitoral suscita dúvidas sobre sua adequação em um cenário onde a transparência, a ética e a moralidade são exigências centrais.
Portanto, a interpretação desse instituto demanda-nos uma (re)leitura jurídica, mas uma reflexão mais ampliada sobre os efeitos que sua utilização pode gerar na dinâmica democrática.
Referências
1. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
2. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
3. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
4. CUNHA, Rogério Sanches. Acordo de Não Persecução Penal: Teoria e Prática à Luz do Pacote Anticrime. Salvador: Juspodivm, 2021.
5. GOMES, Luiz Flávio. Lei da Ficha Limpa: Comentários à Lei Complementar nº 135, de 04 de Junho de 2010. São Paulo: Saraiva, 2010.
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Autores:
Vinicius Valentin Raduan Miguel
Doutor em Ciência Política (UFRGS). Advogado. Professor da Universidade Federal de Rondônia.
Raduan Miguel Filho
Mestre em Poder Judiciário (FGV). Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.
URL: https://rondoniadinamica/noticias/2024/09/a-interseccao-entre-o-processo-eleitoral-e-o-direito-penal-acordo-de-nao-persecucao-penal-e-inelegibilidades,199093.shtml