Rondoniadinamica
Publicada em 03/06/2019 às 14h38
Porto Velho, RO – A madrugada da última sexta-feira, 31 de maio, será para sempre um divisor de águas na vida de Ricardo Marini, sua família, colegas e amigos.
Até aquele momento, ele, um homossexual assumido e com relacionamento estável, jamais havia sentido na pele as consequências da homofobia.
Ainda na noite da quinta-feira (30), Marini foi à boate VIP Club Lounge Bar, situada à Av. Calama com a Rua João Goulart, acompanhado de dois amigos a fim de “comemorar o andamento de um projeto profissional”.
Em determinado momento, um deles foi embora; o outro teria conversado com uma mulher e se separou da companhia de Ricardo.
Marini ficou só.
“Quando eu fiquei só, logo em seguida, veio um cara e me ameaçou. Eu estava com uma pulseirinha com as cores da bandeira LGBT. E eu só vim notar essa relação depois”.
O agressor, ainda de acordo com Ricardo, disse, então, as seguintes palavras: “Cara, melhor você dar o fora daqui, porque aqui não é lugar pra você, entendeu? Porque aqui é todo mundo macho, tem militar aqui, entendeu? E não é lugar pra você. Cai fora!”.
A vítima respondeu educadamente partindo do pressuposto de que o homem a ameaçá-lo era, de fato, militar.
“Militar tem que respeitar a farda. Será que o seu comandante concordaria com esse tipo de atitude?”.
O entrevero terminou temporariamente com a réplica.
Vítima assina representação criminal contra a boate VIP Clube e o agressor de nome "Bruno", ainda não identificado
Ricardo Marini “deixou pra lá”. “Eu estava curtindo, entende?”. Mas, um tempo depois, o mesmo sujeito teria cruzado com ele dentro da boate. Desta feita, não houve diálogo: “Ele passou por mim e me deu um soco. Eu não estava esperando. E foi assim com todos os socos que levei naquela madrugada, recebi desse jeito, sem esperar. Sem acreditar”.
Atordoado física e emocionalmente, Marini saiu da VIP Club. “Não foi nem de longe o soco mais forte que eu levei”, declarou à reportagem.
“Claro que eu fiquei chateado, né? Mas, por mim, eu deixaria pra lá, largaria para o “universo” fazer a função, né?”, complementou.
O cliente, que não queria briga, teve azar: constatou que o seu celular estava sem bateria e não teria como acionar o aplicativo de transporte urbano.
“Tive que voltar para a boate porque precisava encontrar meu amigo para poder chamar o UBER”.
Quando Marini voltou à danceteria, levou outro soco, “desta vez muito forte, no meio na testa, que, na hora, o sangue desceu pelo nariz”. E o agressor, segundo ele, era outro, o que denota uma ação de grupo, distante de um fato isolado.
Naquele momento, ficou com os sentidos embotados e a visão turva. Ricardo não conseguia respirar direito por causa do fluxo de sangue descendo pelo nariz.
“Como estava sozinho e sangrando, o segurança da boate me tirou de lá na base da “gravata” [enforcamento]”.
Corroborando com a versão de ação coletiva, Ricardo disse, ainda, que conseguiu enxergar uns “seis, sete, talvez até dez numa “rodinha” com umas meninas também, namoradas, enfim, essas coisas”.
“Pela lógica da boate, acredito, era melhor tirar alguém que estava sangrando, chocando os clientes, do que agir para conter os agressores”.
“Pouco antes, eu gritei para que alguém chamasse a Polícia, mas aí o segurança me segurou e um dos caras aproveitou pra me dar outro soco enquanto eu estava imobilizado”.
“Quando me colocaram pra fora eu ainda questionei: pô, mas eu que estou machucado, eu que estou sangrando e vocês me colocam pra fora? Quem é o dono do estabelecimento?”, questionou sem sucesso.
A VERSÃO DE RICARDO MARINI SOBRE O VÍDEO DIVULGADO PELA BOATE VIP CLUB
Ignorado pela boate, Marini começou a pedir socorro às pessoas que estavam fora da danceteria. Segundo ele, havia várias pessoas ao redor do empreendimento, umas saindo e outras chegando de lugares diversos.
“Pedi ajuda, mas, enquanto eu pedia ajuda, um dos caras saiu e me bateu lá fora. Ele me deu um soco no olho que aí, nossa, tipo... [pausa] se não tivesse ido ao oftalmologista ontem [na sexta-feira à tarde] era capaz de eu perder a visão. Porque estava muito inflamado. Não houve descolamento da retina, mas estava muito inflamado. Eu estava com uma mancha na visão, tipo aquelas televisões com “chuviscos” que existiam antigamente, sabe?”.
Médico chegou a suspeitar de deslocamento de retina: exame feito às pressas descartou a hipótese
O calvário de Ricardo ainda não havia terminado. A primeira sessão de espancamento e a consequente omissão da VIP Club Lounge Bar não o impediram de verificar o modus operandi das agressões.
A maioria das investidas era praticada de maneira avulsa, quando um dos agressores se desprendia do grupo, batia em Ricardo e voltava a se esconder no meio da multidão.
O sangue na pulseira da boate VIP que estava no braço de Ricardo durante as sessões de espancamento
O socorro do UBER
Já sem esperanças de conseguir socorro, Ricardo disse ter visto um UBER que, ao presenciar a situação do lado de fora da boate, ofereceu ajuda. O motorista disse: “Entra aí que eu te levo”.
“Ficou muito claro que eram vários quando o UBER viu a situação e ofereceu ajuda. Eu entrei no carro e, no tempo de o motorista dar a volta no veículo para assumir a direção, o grupo o cercou. E eles queriam bater nele também única e exclusivamente por ter prestado socorro a mim”.
Algumas garotas tentaram ajudar Ricardo Marini. Elas pediam aos agressores que cessassem a pancadaria.
“Foi aí que ouvi o nome de um deles. Uma menina que estava com ele disse: ‘Bruno, deixa ele. Ele não está fazendo nada. Ele não fez nada, deixa ele!”.
Dentro do carro, Ricardo ouviu um deles inventar a história de que ele havia tentado beijá-lo.
“Nada a ver isso daí. Eu estou namorando. Estava só curtindo a festa. E tem mais: existem câmeras naquele lugar. A minha versão vai ficar muito clara”.
“Pois aí, já dentro do UBER, e era um carro simples, passou um cara pela janela e me deu um soco na boca, que trincou a raiz de um dos meus dentes. E eu fiz uma tomografia depois: o dente quebrou em uma altura que não é possível salvar. Eu vou perder um dente incisivo, da frente”.
“E eu não estava fazendo nada. O primeiro sujeito que veio me ameaçar sentiu sua masculinidade ameaçada porque eu estava usando uma pulseira com as cores da bandeira LGBT. Foi só isso”.
Canivete e tentativa de homicídio
Rondônia Dinâmica conseguiu conversar com o motorista, que pediu para não ser identificado. Aceitou que o seu depoimento repassado em áudio à reportagem fosse veiculado desde que sua voz restasse distorcida. Os termos do acordo foram cumpridos e, a partir de agora, o (a) leitor (a) terá à disposição o pronunciamento de uma testemunha-chave relacionada ao caso.
OUÇA O RELATO NA ÍNTEGRA
O profissional dá detalhes que nem mesmo a vítima havia apontado ainda. Por exemplo: segundo ele, um dos agressores caracterizado como “o grandão barbudo”, aparentemente com características idênticas ao homem que aparece no vídeo veiculado pela boate através de Nota de Esclarecimento, portava um canivete e detinha a intenção de desferir golpes fatais em Ricardo Marini.
Ele próprio seria vítima se não fossem os colegas de profissão que apareceram para conter os ímpetos criminosos da turba ensandecida.
“O grandão deu um soco na boca dele [Ricardo] dentro do meu carro. Foi onde desci do carro e fui tirar satisfação sobre o porquê de aquilo estar acontecendo, porque eu não deixaria acontecer novamente”, disse.
Após o questionamento, outro membro do grupo veio por trás do motorista e o empurrou.
"Eu avisei que não era de briga e foi aí que eu vi que ele puxaria o canivete".
“Só que rapidamente juntou em torno de uns 15 motoristas de aplicativo comigo e um deles já deu um tapa na mão do grandão, derrubando o canivete”.
Depois disso, a testemunha que salvou Ricardo Marini da morte conseguiu erguer os vidros e ir embora deixando a vítima em casa.
No Twitter, declarações de moça que presenciou agressões contra Ricardo Marini confluem com o depoimento do motorista de UBER / Divulgação
As versões da boate
No dia 1º de junho, a VIP Club veiculou Nota de Esclarecimento apresentando a sua versão dos fatos. A boate usou um vídeo de um minuto, praticamente sem contexto, informando, inicialmente, que fora Ricardo quem se envolveu em conflito com uma moça. De acordo com a empresa, Marini a teria empurrado e, no mesmo momento, o rapaz que estava com ela não gostou e “foi pra cima de Ricardo”.
Por fim, destacou: “É visível ver que os seguranças mobilizam e retiram, [sic] o rapaz que chegou a agredir Ricardo!!!”.
Já nesta segunda-feira (03), a mesma nota foi editada. Na mensagem já não consta mais o nome de Ricardo.
“Quanto a pessoa que se sentiu ofendida, peço que aceite nossas desculpas sinceras, ao tempo em que nos colocamos a disposição para prestar informações, disponibilizar vídeos, esclarecer o caso e identificar envolvidos”.
Nas duas versões da Nota de Esclarecimento – tanto a original quanto a editada – a VIP Club alega que o vídeo anexado à mensagem comprova que o agressor de Ricardo Marini fora “arrastado” para fora da boate.
Ricardo Marini contesta a informação do vídeo e da mensagem, alegando que o rapaz visto nas imagens sendo “enforcado” pelo segurança enquanto o homem barbudo se aproxima para socá-lo não é seu agressor, mas sim ele próprio.
Sobre a situação, a Comissão de Diversidade Sexual da Seccional Rondônia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RO) manifestou repúdio a todas as formas de LGTBIFOBIA.
“Notícias veiculadas nas redes sociais dão conta de que um jovem foi agredido em uma boate da capital, no dia 31 de maio, apenas por sua orientação sexual”, pontuou o órgão.
O Ministério Público Federal (MPF/RO) também instaurou um procedimento investigatório que será acompanhado de perto pela OAB/RO.
Advogados ouvidos pelo Rondônia Dinâmica acreditam que tanto a boate, seus proprietários, seguranças e também os agressores quando identificados poderão responder pelo crime de homofobia, recém tipificado pelo Supremo; lesão corporal grave e até mesmo omissão de socorro (este último no caso de quem detinha o dever legal de promovê-lo).
A VIP Club Lounge Bar também deverá responder por violações ao direito do consumidor em decorrência das falhas nos serviços prestados pela danceteria. Na visão desses juristas, a boate deveria zelar pela segurança das pessoas que a contratam para ter um espaço para lazer livre de violência.
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