MCs Zói de Gato, Felipe Boladão, Duda do Marapé, Primo e Careca - Reprodução/Facebook
O mês de abril é de luto no funk paulista. Cinco MCs e um DJ incentivadores do ritmo morreram antes de o estilo se tornar um dos maiores sucessos de São Paulo.
De 2009 a 2012, Zói de Gato, Felipe Boladão e DJ Felipe, Duda do Marapé, Primo e Careca, nesta ordem, morreram enquanto tentavam colocar o funk de São Paulo no cenário nacional.
Com exceção do MC Zói de Gato, vítima de um acidente de carro na capital, todos os artistas foram assassinados a tiros no litoral paulista. Segundo informações da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo), ninguém foi preso. O MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) vai além: não existe nenhum suspeito e todos casos foram arquivados sem resolução.
"Antigamente o funk era mais discriminado, não tinha tanto público como hoje, e cada MC, quando começava a carreira, só se envolvia se tivesse ajuda de um padrinho", conta o cantor e compositor Luiz Felipe Amaral. Conhecido como MC Amaral, ele conviveu com todos os artistas mortos e destaca que foi “apadrinhado no funk” pelo MC Primo.
Para Amaral, é graças à luta dos MCs da Baixada Santista — antes da série de assassinatos — que atualmente o funk paulista é um dos maiores sucessos do país. Segundo o cantor, somente depois das mortes o ritmo ganhou força na capital paulista.
"Se o funk está forte na capital paulista hoje, tem que agradecer muito a esses MCs [mortos]. A Baixada Santista e o Rio de Janeiro foram os percursores do funk no Estado de São Paulo inteiro. Não existia funk em outro lugar a não ser Baixada Santista ou Rio. As casas de shows da capital sempre procuravam contratar funkeiros dessas regiões."
Em setembro do ano passado, MC Amaral lançou um funk que homenageia os quatro artistas mortos no litoral paulista. Esta é a música mais recente homenageando as vítimas. Os primeiros versos da música são os seguintes:
A HISTÓRIA
Conheça os Mestres de Cerimônias
MC Zói de Gato
Eu não quero bochicho, só quero dinheiro ♫
Dener Antônio Sena da Silva morreu no dia 9 de abril de 2009, com 16 anos, depois de um acidente de carro na região de Parelheiros, extremo da zona sul de São Paulo. Segundo a SSP-SP, o caso foi registrado no 25º DP (Parelheiros) e o inquérito policial foi enviado para a Justiça quatro meses depois, em 31 de agosto. Uma pessoa foi indiciada, porém está foragida. De acordo com o MP-SP, o caso foi arquivado sem nenhuma prisão.
O menino com voz infantil usava as músicas para relatar o orgulho de morar no bairro do Vila Natal, região do Grajaú (zona sul de São Paulo), e descrever cenários de ação com armas, carros e polícia. Além de ressaltar ser da "VN" (sigla do bairro onde morava), dizia o objetivo que tinha na profissão que começava a se destacar: "Não quero bochicho, só quero dinheiro".
O sucesso do jovem foi tão relâmpago que nem sequer deu tempo de gravar o primeiro videoclipe. O vídeo que ele aparece e faz mais sucesso no YouTube é de uma apresentação na antiga casa de shows Maria Mariah, na avenida Atlântica (zona sul). Esta teria sido a última vez que ele subiu no palco para cantar.
Na abertura do show, ao estilo Racionais MCs, Zói de Gato entra em uma moto de alta cilindrada, deixa o público extremamente agitado e começa o show com muitas vozes contando junto (veja abaixo). Algumas músicas também marcavam o início do que anos depois seria chamado de "funk ostentação".
"O moleque era mil grau. Tinha 16 anos, mas parecia ser bem mais velho. Ele era humilde, não falava mal de ninguém, sem palavras. A gente era muito próximo e, por eu ser 11 anos mais velho, era como se fosse um pai para ele", disse Alexandro Pereira Santos, conhecido como DJ Tyrim, 36 anos. Ele era o responsável pelas batidas nas músicas do adolescente.
Quando começou a cantar, as músicas do Zói de Gato relatavam confrontos e fugas rivalizando com a polícia. O adolescente ainda relatava sobre o consumo de drogas, sobretudo o lança-perfume, e destacava supostas ações da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).
As músicas se tornaram sucesso. Vários contratos para shows por um lado e, por outro, inquietação de policiais. Segundo o DJ Tyrim, Zói de Gato passou a ser abordado pela Polícia Militar com frequência e começou a mudar os ambientes que vivia e os rumos de suas letras.
"Ele foi morar e trabalhar comigo, porque eu era casado e com três filhas, então comecei a passar outra visão para ele. Foi nesse tempo que ele parou de fazer apologia e fez músicas como 'Amor é só de Mãe', 'Águas Sujas' e outras para deixar de ser visado", lembra Tyrim.
O DJ participou recentemente da gravação do documentário sobre Zói de Gato, dirigido pelo youtuber Kelvy Lopes. A previsão é que o filme seja lançado no próximo dia nove, quando completam nove anos da morte do artista.
"O Zói de Gato foi importante para o movimento funk pelo fato de ser jovem e talentoso. Ele mostrou que um cara de comunidade, sem estrutura nenhuma financeira pode vencer e chegar longe, sim", afirmou Lopes. Mesmo sem ter conhecido o adolescente, o youtuber afirma que durante a gravação do documentário percebeu "o quanto o artista era amado pela quebrada dele".
MC Felipe Boladão
A vida no sorriso mesmo passando sufoco ♫
Felipe Wellington da Silva Cruz morreu no dia 10 de abril de 2010, com 20 anos, juntamente com o DJ Felipe Silva Gomes, que também tinha 20 anos, vítimas de tiros no município de Praia Grande, no litoral paulista. Segundo a SSP-SP, o caso foi registrado no 1º DP da cidade e encaminhado para a Justiça quase quatro anos depois, em 21 de janeiro de 2014. O MP-SP afirma que o caso foi arquivado, não existe nenhum suspeito e os autores do crime seguem soltos.
O tempo de cantor do jovem durou menos de quatro anos, mas suficiente para compor sucessos em bailes funk até hoje, sobretudo em shows do cantor Menor do Chapa. No YouTube, o vídeo de maior sucesso de Felipe Boladão, com quase 10 milhões de visualizações, fala sobre a morte de cinco jovens: "Que bom seria se eles voltassem. Eles sim fizeram uma viagem" (vídeo abaixo).
As características de Felipe Boladão descritas pelos amigos são um consenso: ele era alegre e brincalhão. Por causa da idade e da boa pinta, ele também fazia sucesso com as fãs.
As músicas, no entanto, falavam de outra realidade. Em "Residência dos Loucos", o artista relatava cenas de um assalto a banco realizado com sucesso. Felipe Boladão relata com detalhes vários momentos de antes, durante e depois da ação, inclusive como o caso foi noticiado. Tudo ficção. Em um dos primeiros shows que apresentou a letra, ele já tinha uma certeza: "Se essa não pegar, eu paro de cantar".
Um dos pontos altos da canção é quando ele fala que o crime foi planejado e executado por integrantes da facção criminosa PCC. O refrão da música, no entanto, ressaltava a região onde morava: "Moro na zona noroeste onde reside só os loucos. Nós leva [sic] a vida no sorriso mesmo passando sufoco".
Outra música de sucesso do cantor, a "Mundo Moderno", também falava no refrão sobre onde morava, mas não era tão específico: "Parece o paraíso, do lado do inferno. Brasil, mundo moderno". A letra, no entanto, relata os problemas enfrentados pela população mais pobre.
Em um vídeo gravado pela equipe do site Top Funk em 2008 e publicado no YouTube seis anos depois, o MC finalizou dizendo sobre seu desejo de um dia ser conhecido verdadeiramente pelas pessoas que o criticavam. "Quero que um dia quem acha que sou arrogante possa conversar comigo para conhecer minha humildade e gostar cada vez mais de mim".
No dia do duplo homicídio, Felipe Boladão e DJ Felipe estavam se preparando para se apresentar em um baile funk na Grande São Paulo. A dupla estava em um momento de bastante sucesso e fazia diversas apresentações juntos.
MC Duda do Marapé
Lágrimas caem agora e vão embora, no rosto rolam ♫
Eduardo Antônio Lara morreu no dia 12 de abril de 2011, com 26 anos, vítima de tiros de pistola ponto 40 no centro da cidade de Santos, no litoral paulista. Segundo a SSP-SP, o caso foi investigado pelo 1º DP de Santos e o inquérito foi enviado para a Justiça mais de três anos depois da morte, em 1º de setembro de 2014. De acordo com o MP-SP, as apurações não chegaram a nenhum suspeito pelo crime e o caso foi arquivado.
O Duda do Marapé foi um dos cantores que mais fez sucesso e inspirou jovens do litoral paulista a cantar funk. Entre jovens que seguiam e se espelhavam no trabalho do MC estava Felipe Boladão. Em entrevista ao site Top Funk, dois anos antes de ser assassinado, Felipe Boladão disse que "Duda do Marapé de palco não tem outro aqui na Baixada".
Ele, no entanto, não gostava de cantar sua música que mais fez sucesso em público por considerar triste demais, como conta o primeiro empresário de Duda, o produtor e DJ Marcelo Fernandes de Brito, 37 anos.
"Toquei a música 'Lágrimas', a versão ao vivo que estourou, em um palco improvisado, gravação improvisada, em um aparelho do MD [mini disco]. Eu falei: 'Canta aquela música, a que você cantou ontem para mim'. E ele disse que 'não, não, essa música é muito triste'. Eu insisti e ele cantou. Outro MC gravou o show, sem ele saber mesmo, e dessa gravação, de uma apresentação para 150 pessoas, veio o hit da vida dele", lembrou Marcelo (a gravação foi publicada no vídeo abaixo).
A versão publicada no YouTube em 1º de outubro de 2008 é o vídeo mais visto do cantor até hoje. Mas, à época, as visualizações das publicações na internet não tinham o alcance de hoje, e a música fazia sucesso graças ao CD que começou a tocar em vários carros na Baixada Santista. Em meio ao "funk proibidão" que predominava na região, o "funk consciente" de Duda ainda tinha espaço.
A música carregada de conteúdo cantada por ele era influência de vários estilos, sobretudo o rap, por ser o ritmo mais presente no bairro onde ele morava. O fato de morar em um "berço artístico" fez com que o MC colocasse como prioridade cantar, apenas isso.
"O que me surpreendia é que ele não queria ter um carro ou uma casa, como a maioria das pessoas que trabalha para isso. O Duda só queria cantar, eu não via ganância, no bom sentido. Ele era uma pessoa simples, comum, que dizia para mim: 'Fica com todo meu dinheiro e me dá 50 reais'. E ia assim, pedia 50, 100 reais todo dia", disse Marcelo.
Amigos de Duda lembram que ele estava vivendo um momento feliz, fazendo o que queria: cantar e representar sua quebrada, o bairro que levava no nome artístico. Marcelo destaca, no entanto, que o auge dele ainda era pouco acessível para quem estava fora do movimento: "Hoje mudou e ele não viu essa mudança".
Funkeiros que faziam parte do movimento na época dos assassinatos acreditam que foi algo orquestrado.
Duda do Marapé estava na escadaria da região conhecida como "cracolândia", junto com outros usuários de drogas. "Infelizmente, já tinhamos perdido ele para as drogas", lembra Marcelo. O artista morreu com nove tiros.
MC Primo
O funk é pra curtir na disciplina; É o batidão da Baixada Santista ♫
Jadielson da Silva Almeida morreu no dia 19 de abril de 2012, com 27 anos, baleado em frente à casa onde morava com a família, no bairro do Jóquei Clube, em São Vicente, litoral paulista. Segundo a SSP-SP, o caso foi registrado no 2º DP da cidade e o inquérito foi enviado para Justiça mais de cinco anos depois, em 29 de maio de 2017. O MP-SP afirma que ninguém foi apontado como suspeito pelo assassinato e o caso foi arquivado.
Primo foi um dos pioneiros do funk no Estado de São Paulo e cantou a música que se tornou um dos clássicos do estilo nacionalmente. Seus fãs cantam até o fim quando alguém começa o "Diretoria tá de pé, aí mané..." (vídeo abaixo).
Com letras próximas ao rap e com a batida tradicional do funk, Primo tinha espaço nas disputadas casas de shows da Baixada Santista. Mas não se contentava em apenas se apresentar, ele queria abrir esse espaço para jovens artistas que surgiam na região. O objetivo do MC era fazer o estilo se propagar.
"Quando comecei, tive a felicidade de conhecer o MC Primo: uma pessoa fora do comum, que me ensinou o significado da palavra humildade. Com ela [humildade] você entra em qualquer lugar. Fizemos vários bailes juntos, abri vários shows dele. Ele me ensinou muita coisa no funk", lembra MC Amaral, que se considera "afilhado" de primo no funk.
O funkeiro foi o penúltimo a ser assassinado na onda de mortes em abril, nove dias antes de Careca. De acordo com um parente de Primo que falou com a reportagem, o MC "tinha medo de bala" depois de ter visto amigos cantores sendo mortos. O familiar lembra que no dia do crime, Primo iria para capital paulista levar o DVD dele a um projeto.
"Ele tinha ido levar o filho dele em casa para gente ir para São Paulo quando aconteceu aquilo [o assassinato]. Foi inacreditável, porque todo mundo gostava dele. Na família, só tinha festa quando ele estava junto com nós. Até arrepio quando falo essas coisas", lembra o parente.
Reportagem do R7 publicada na época do crime apontou que três policiais militares haviam sido presos suspeitos de serem responsáveis pelos assassinatos de Primo e de um outro estudante morto três dias antes do artista. Questionada sobre essa investigação da Corregedoria da PM, a SSP-SP não respondeu.
MC Careca
A grade prende, mas não prende os pensamentos ♫
Cristiano Carlos Martins morreu no dia 28 de abril de 2012, com 33 anos, morto com tiros no rosto na cidade de Santos, litoral paulista. Segundo a SSP-SP, o caso foi registrado no 5º DP do município e teve o inquérito enviado para Justiça mais de três anos depois, no dia 19 de maio de 2015. Conforme informações do MP-SP, o caso não teve nenhum suspeito identificado, os autores do crime seguem soltos, e o caso foi arquivado.
Boa parte da carreira, Careca fez dupla com outro MC da Baixada, o Pixote. As letras da dupla faziam dos shows algo próximo a um roteiro de um filme: músicas com muita ação, algumas relatando supostas cenas envolvendo moradores das comunidades em confronto com policiais.
O "proibidão" levava grande público às apresentações da dupla e, tempo depois, algumas músicas foram adaptadas com letras menos cinematográficas. A músicas "E se mexer com nós" (vídeo abaixo) é um exemplo. O som foi um dos maiores sucessos da dupla e até hoje está presente em shows de MCs.
No meio do público dos shows dos MCs Careca e Pixote estava Rodrigo Bezerra, conhecido como DJ Digão, 30 anos. Atualmente integrante de uma das maiores produtoras de funk do Brasil, a GR6 Explode, Digão conta que já trabalhava com funk quando começou a acompanhar e admirar o trabalho do MC Careca.
"Eu tive uma transição de fã para o palco. Comecei a curtir funk indo ver a dupla Careca e Pixote, depois de um tempo estava dividindo palco com Careca. Considero ele um paizão mesmo."
Antes de trabalhar com Careca, com quem ficou por um ano e meio, o DJ havia feito as batidas nos sons de Felipe Boladão por um ano e meio também. Depois, ainda trabalhou com MC Primo. "Trabalhar com uma pessoa por bastante tempo o faz se tornar próximo, mas eu era mais amigo do Careca, por causa da minha admiranção de fã."
Apesar de o sucesso da dupla ser a mais lembrada por artistas e pelo público até os dias de hoje, o maior sucesso de Careca no YouTube é a música "Tá na memória". Nesta, o cantor faz homenagens a amigos que estão presos ou foram mortos. O clipe mostra crianças e adolescentes armados, com uma letra falando sobre as tristes consequências que o crime pode causar à juventude.
OUTRO LADO
O que o Governo diz sobre as mortes
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo disse que, referente à morte do MC Zói de Gato, uma pessoa foi indiciada "por homicídio culposo e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor". O suspeito, no entanto, encontra-se foragido.
Sobre o assassinato de MC Primo, a pasta disse que "um suspeito foi identificado e sua participação no crime será confirmada após realização de exame de balística". O inquérito policial foi enviado à Justiça em maio do ano passado.
A secretaria ainda informou que os crimes contra Felipe Boladão e DJ Felipe, Duda do Marapé e Careca "seguiram sem suspeitos identificados".
A reportagem ainda enviou para o MP-SP os seguintes questionamentos:
Existem suspeitos pelos crimes?
Foi pedida a prisão de alguém?
A resposta para as duas perguntas foi "não". A assessoria de imprensa do órgão ainda completou dizendo que "os casos foram arquivados".
Autor / Fonte: Kaique Dalapola, do R7
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