Toneladas de peixes sem procedência são vendidas todos os dias em mercados de Porto Velho; casos de intoxicação alimentar podem estar relacionados

Toneladas de peixes sem procedência são vendidas todos os dias em mercados de Porto Velho; casos de intoxicação alimentar podem estar relacionados

Rondônia Dinâmica teve acesso a autos de infração e buscou também a opinião de uma especialista em segurança alimentar a respeitos dos riscos ao consumidor

Porto Velho, RO – Rondônia já encabeça pelo menos desde 2017 o ranking dos estados onde a qualidade da produção de peixes chegou ao patamar próximo à perfeição. 
Com a indústria regional cada vez mais comprometida com os rigorosos processos ligados à criação do peixe em cativeiro, o consumidor, teoricamente, não deveria ter com o que se preocupar. 

Mas informações obtidas exclusivamente pelo jornal eletrônico Rondônia Dinâmica comprovam a diferença abissal entre teoria e a prática. E no mundo real, os riscos assumidos pelos consumidores já se materializaram, possivelmente, em pelo menos três casos de intoxicação alimentar.

Não há como dizer com certeza absoluta que o diagnóstico unânime verificado no trio está relacionado aos fatos que serão descritos logo mais abaixo, porém, todos eles estão ligados por relatos praticamente idênticos.

Os enfermos, que não se conhecem, compraram e comeram peixes de empreendimentos locais distintos, que operam o comércio tanto no formato de atacado quanto varejista.

A reportagem teve acesso a autos de infração que demonstram, de maneira cabal, que esses supermercados estão comprando e vendendo – diariamente – toneladas de peixes sem procedência. A ideia, como de costume, é comprar mais barato para elevar os lucros.

Na contramão do aperfeiçoamento constante da indústria, que gera emprego, renda e tem custos mensais significativos a fim de manter a qualidade do peixe, seguindo todas as exigências burocráticas e legais, a atuação de órgãos de vigilância, ou a falta dela, para ser ainda mais preciso quanto aos fatos, contribui sobremaneira com a permissividade.
Além de tudo, a prática viola reiteradamente o Art. 8º do Código de Defesa do Consumidor (CDC). 

O dispositivo versa:

[...] CDC - Lei nº 8.078 de 11 de Setembro de 1990

Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

Art. 8º Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. [...]

Um exemplo prático está registrado em um relatório de apuração de infrações administrativas ambientas lavrado por servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) no começo deste ano.

Essa situação específica destoa da comercialização de espécies em cativeiro que passaram pelo processo de industrialização convencional, pois trata-se de infringência voltada a peixes protegidos por lei ambiental federal. 

Entretanto, serve para demonstrar tanto os riscos à saúde assumidos pelos consumidores sem que eles saibam o que estão comprando quanto a atuação ilegal e irresponsável dos empresários do ramo.

No documento, fora atestada a comercialização de quase 8 toneladas de peixes originados de pesca “sem comprovante de origem ou autorização do órgão competente”. Isso rendeu para o estabelecimento multa de mais de R$ 150 mil.

Agora, se o IBAMA consegue, às vezes, ser pontual acerca de suas funções, o mesmo não ocorre com órgãos regionais como o Departamento de Vigilância em Saúde de Porto Velho (VISA), ligado à Secretaria Municipal de Saúde (SEMUSA), ou o próprio Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV/RO), este último sem condições logísticas para verificar in loco estabelecimento por estabelecimento. E sem a devida intervenção dessas instituições, com a ilegalidade correndo longe da compreensão da sociedade, o Ministério Público (MP/RO) carece de provocação para fins de atuação.


Aparecida Zuin: "Consumidor deve estar atento ao que lhe é oferecido como alimento" / Imagem: Reprodução-WhatsApp

Rondônia Dinâmica entrevistou a professora Aparecida Luzia Alzira Zuin, atualmente lotada no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).  Em novo processo de mais uma especialização já concluída, Aparecida Zuin fez estágio de Pós-Doutoramento na Università del Salento, em Lecce, na Itália (Centro de Estudo do Risco), sob a supervisão do Prof. Dr. Raffaele De Giorgi, com o tema: O Alimento, a Segurança e o Risco.

Rondônia Dinâmica – Como essa situação de compra e venda de peixes sem procedência afeta a segurança alimentar do rondoniense?

Aparecida Zuin – Ultimamente, a preocupação com a saúde alimentar tem sido estendida para além do consumo, isto é, devemos sim nos preocupar com o que comemos para garantia da nossa segurança alimentar.  Contudo, precisamos entender e levar em conta que esta segurança ultrapassa o ato de “comer” (levar uma comida à boca), uma vez que a produção, a distribuição e o controle do alimento fazem parte do que venha ser esta segurança. 

RD – E nesse quadro de incertezas, qual postura o consumidor deve assumir daqui para frente?

AZ – Para mim, o consumidor deve estar atento ao que lhe é oferecido como alimento, o que eu tenho discutido como consumo responsável. Agora, não podemos descartar, por outro lado, a responsabilidade de quem produz e distribui o alimento. 

RD – Nesse caso, então, o comércio ilegal, ou parcialmente ilegal, atua contando tanto com a omissão dos órgãos fiscalizadores quanto com a ignorância da população sobre o tema. É isso?

AZ – Venho insistindo nessa questão, porque nos países onde o direito alimentar tem sido respeitado, dentre os princípios considerados atuais e/ou modernos encontram-se a defesa à educação e informação dos cidadãos sobre o que se deve comer, mas, também à economia voltada às garantias da existência digna e da tutela da qualidade da produção e da distribuição do alimento.

RD – Então é mais uma questão de consciência do que necessariamente a respeito de ausência de meios legais para combater a prática? 

AZ – O que quero dizer com isso é que o produtor e o distribuidor (se for o outro que não o produtor) passe a pensar seriamente sobre o que é produzir e alimentar as pessoas, porque já existe no campo jurídico a disciplina sobre a produção, a comercialização, o uso dos produtos alimentícios para o consumo humano (veja a Lei Orgânica de Segurança Alimentar – LOSAN (Lei nº 11.346/2006), importante marco legal da segurança alimentar e nutricional).

RD – Ignorada a etapa de conscientização, qual a saída? 

AZ – Se não há a responsabilidade necessária para melhorar a trajetória do alimento, seja do rio, do campo, da indústria, etc., para a mesa das pessoas, devem àqueles que têm a competência da fiscalização - fazer valer os instrumentos de responsabilização - por atitudes que venham a causar danos à segurança alimentar de outrem. 

RD – E quem assume essa responsabilidade?

AZ – O processamento, industrialização, comercialização, abastecimento até a distribuição, cuja responsabilidade é partilhada com diferentes setores de governo e da sociedade, constam da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde, e isso deve ser colocado em prática.

 

Autor / Fonte: Rondoniadinamica

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